quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Des(corpo)rado

Foto: Hélio Beltrânio

Há coisas na vida que construímos sem usar as mãos e há tantas outras que destruímos com a força das próprias mãos para sentir o peso do que se era e do quanto se estava enrijecido e preso dentro de um molde. Por que, às vezes, a vida parece estar retida em algum lugar que não sabemos dar nome? Eu dou nome de corpo. Minha relação com meu corpo - e consequentemente com o corpo do outro - entrou num processo de mudança, uma nova (re)visão. Não estou falando de sexo, mas talvez esteja também. Não estou falando de quebra de paradigmas, mas talvez esteja também.

Eu não sabia onde a minha vida e a minha existência estavam represadas até perceber que a superfície de mim - o corpo - não era tocada, acessada. É, eu não sei fazer a dicotomia (ainda). Se me tocam o corpo, espero que esse toque mergulhe também em minha existência penetrando todos os muros até encontrar a minha alma. Nós não somos mais tocados - nem tocamos - com o cuidado de quem toca o sagrado. Não, eu não estou tentando construir um tabu ou reforçar paradigmas religiosos. Para (vi)ver é preciso tocar. Se conhece e se vê mais com a ponta dos dedos ou com as pupilas dilatadas ou no escuro onde o (br)eu não é o limite.

Algumas pessoas conhecem mais o próprio corpo na dor. Se dói é porque estou vivo. E esse talvez seja só mais um clichê. Mas a dor pode nos desmembrar em muitos. Mas você sabe onde dói? Às vezes a dor fica abafada no fundo do peito querendo doer. E chamo isso de angústia. Uma dor que não consegue doer. Angústia, pra mim, é alma represada, é não ter onde desaguar, é não ter onde vomitar quando estou de ressaca, é uma ferida esquecida. O corpo diz tanto do que está imerso dentro si. Mas, às vezes, nós ignoramos os sintomas e colocamos os demônios para dormir em vez de exorcizá-los.

Eu queria saber dançar com a mesma leveza de uma bailarina num palco. Solitária, mas livre como uma borboleta batendo as asas. Eu queria fazer um ritual. Deitar meu corpo sobre o altar do mundo, onde os corpos das abominações são marginalizados e marcados como pecado, e deixar que a vida me toque mesmo sabendo o quão violento seu toque pode ser. O que antecede a nudez? Quando nos desnudamos estamos realmente nus? É dolorido aceitar a crueza que o outro nos oferece. Sexo é um pedido de socorro, uma tentativa de não sucumbir. Orifícios são saídas de emergência. Mas quem pode nos salvar de incêndio do que somos?


A liberdade vez em quando me parece tão pesada. Talvez seja por isso que a alma carece de um corpo para ser alma, para ser vida, para ser existência, para ser. Parece que há sempre um limite e que nunca conseguiremos chegar no fundo. Talvez seja nossa ânsia em sobreviver. Porque, depois de mergulhar, não se sabe o que vai encontrar. Não sei se desaprendemos a amar. Pode ser medo. Medo de morrer, porque o amor e a morte estão tão próximos que parecem ser um. Ontem eu morri um pouco e me deixei morrer, mas não fui para a sepultura. Morri sobre outro corpo, em outras pupilas, entre os lábios ávidos de outra pessoa. Não quero uma língua que lamba apenas minha pele. Quero uma língua que se atreva a lamber minha solidão até sorver o meu gosto. Quero a violência da delicadeza e o peso da leveza. Quero dançar até meus demônios fugirem de mim. Quero ser mais leve - mesmo carregando o mundo sobre os ombros.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

A fera

Foto: Hélio Beltrânio

risque um fósforo nas suas virilhas
acenda o cigarro na minha boca
um homem deixou um choro de criança
recém-nascida
o mundo não se afogou no seu umbigo
eu enterrei o meu, mas narciso não morreu
meus pulsos dedilhados por teus dedos
poderíamos morrer de amor
mas é tão patético e frio
ninguém toca tão raso como você
não se proteja depois de cair
do décimo terceiro andar e o vigésimo homem
abriu as cortinas antes do dia abrir as pernas
e parir a noite na esquina da 25 de março
ninguém vê ninguém
perdi a conta de quantos orifícios tenho
no corpo vazios impreenchíveis
não mergulhe se quiseres voltar à superfície
eu não escrevo porque sei escrever
escrevo porque a morte me chama e agora
não posso dizer sim eu só posso olhá-la
contemplando o abismo irreparável no papel
as grades das linhas tentando prender
a fera machucada tentando se soltar
tentando se livrar e sem carne
para se alimentar pra não morrer de fome
come
sua própria carne na mesa sem facas
afiadas as palavras ditas por sua boca
mórbida
costuram suas feridas em cima
das minhas cicatrizes