terça-feira, 27 de setembro de 2016

Origami

Foto: Ryan Michael Kelly

poderia dizer que meu destino se cruzou
com o teu, baby
mas eu estou sempre com essa sensação
vertiginosa de que vou cair
e caio
sempre no lugar errado bati tambores
depois de quebrar as cordas do violão
esfolando meus pés no chão de tanto dançar
as danças proibidas para tentar
prender você em mim
o sexo machucado escondido
entre as mãos hesitantes querendo
esconder a vergonha de estar só
ferida e sangrenta solidão exposta
recaída sobre a cama violentada
me dobro e me desdobro e me dobro
duzentas e trinta e oito vezes
sobre os teus braços pareço um origami
retorcida a ponto de sentir meus ossos
rangendo como as portas velhas da casa de vovó
se abrindo e se fechando e dando acesso e
expulsando para fora de si a escuridão e mofo
você diz que não suporta o meu cheiro
enquanto eu acolho o teu fedor
na minha pele cicatrizes queimam
“o passado não se afoga
num copo de vodka” você diz lentamente
enquanto tenta se livrar com força
das minhas mãos escorrem a ausência
de todos os corpos um dia esmagados
pelo peso da minha alma
esfomeada
agora devastada
por não ter onde
se alimentar

domingo, 18 de setembro de 2016

Cinquenta e dois anos

Foto: Hélio Beltrânio

por que você não fuma mais?
eu estou queimando na tua boca
uma maldição que perdura cinquenta
e dois anos
estou vestida de branco
mas não vou me casar
não vou dizer sim nem não ao pé do altar
vou enclausurar o silêncio no meu útero
até parir as palavras de todas as almas mudas
que não querem dar respostas que não querem
dizer sins nem nãos fervendo de raiva
quando você me chama de louca de histérica
vou abortar as promessas antes que elas se cumpram
no deserto gemendo convulsivamente de dor
se liquefazendo para saciar sua própria sede
nesse calor de trinta saaras e
de toda a porra morna
incapaz de fecundar a minha garganta
cortada verticalmente com desespero
: há um nó
por que você não para de me perguntar
se quero ou não quero gozar eu quero
sim, eu quero ver você queimando como eu queimei
com a boca toda aberta para mim em dentes
tão apodrecidos quanto a tua alma
pedindo me salva me redime me molha
dentro do mar infestado de águas-vivas
sem saída sem resposta porque eu não quero dar
mais um pedaço da minha carne
pra você
comer

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

O cansaço dos que restaram


Parece que estamos  todos  em carne viva. Pulsamos desesperadamente, sangramos com a força de uma hemorragia interna, queimamos como uma criança com uma febre de trinta-e-tantos-graus sem que se ache a causa da doença. Sim, nós estamos em carne viva. Estamos doentes. E deus nos livre de nos curarmos agora. Todos nós e até os laços desfeitos. Um olhar atravessado nos atravessa até as vísceras. Uma palavra não dita fere nossos ouvidos. Uma palavra espinhosa nos estoura os tímpanos. Queremos escutar melhor ao mesmo tempo em que queremos ser surdos pra não ouvir tanto. Queremos ver com a sensibilidade de quem rumina os detalhes de todas as coisas e, quando conseguimos ver, desejamos a cegueira. Porque ver demais arde os olhos. Um ferro em brasa penetrando nossas carnes e chegando ao fundo. Marcando-me. Marcando-nos.  E vivemos tentando remediar, remendar os trapos, reconstruir os pedaços e abafando a febre embaixo de compressas com água quente e nos cobrindo de pele e de mentiras, porque a verdade não encontra descanso em qualquer ouvido e o céu sente o peso das nossas cabeças. Estamos cansados.

sábado, 10 de setembro de 2016

Há amor em São Paulo?

Foto: Jonas Oliveira

disposto e exposto: rasgo minha garganta
dedilha minhas cordas vocais
componha em mim mais uma melodia
para que se alcance todos os vãos
entre trens-e-plataformas o amor
suporta quietinho num canto assustado
uma banda toca sobre todas as portas
abrindo e fechando depois do sinal
você pode se ferir você pode cair
deus queira que você caia só uma vez
mas pode tocar através de mim
para que a tua melodia rasgue as cortinas
invisíveis e estendidas no ar protegendo
nossas faces nossos olhos tímidos
e todos os abismos sejam penetrados com
o teu som arde em meus ouvidos
sou o primeiro a ouvi-lo
: uma mãe emocionada que acaba de ouvir
o primeiro choro de seu bebê
sou o útero onde fecundas a tua existência
canalizo todas as dores que sentes
dói em mim dores jamais doídas
não há parto sem dor não há beleza
não há o que nasça sem antes ter sido
atravessado pelos dedos e pelas unhas
da vida: esse deus que não recebe incenso
nem oferendas
mas nos rasga nos expõe para o mundo nos livra
até o último trem partir e a estação fechar
o nosso som se calar e mudos possamos
compor uma melodia para que o amor
em nossos peitos volte
a amar

terça-feira, 6 de setembro de 2016

69

Foto: Hélio Beltrânio

Você me amarra sobre a cama e o peso do chão está sobre o meu corpo e eu não consigo encontrar uma lógica nisso que você acabou de dizer. Só não faço você engolir tudo de volta porque ainda estou amarrado ao pé da cama e aos teus pés esfolados de tanto permanecer aqui velando nosso amor em coma enquanto você goza, gritando, sem conseguir dizer o meu nome. Você goza sobre o corpo de outro sobre a cama de outro e amarra outras mãos que não as minhas e prende a minha liberdade sobre seus calcanhares pra que você também não consiga fugir. Quem aprisiona também se torna prisioneiro.

Não há como suportar olhar no espelho e conseguir se enxergar. Resta o desastre e a fúria e a fuga e o estilhaço. A colisão da tua pupila contra a minha. O pavor. A bomba que nunca explode e o gatilho e o tiro que saiu pela culatra. Quase enlouquecendo com o tic-tac-tic-tac desse relógio pendurado na parede. O meu vazio flertou com o teu vazio e nos derramamos e nos afogamos e bebemos tudo que podíamos beber e vomitamos, juntos, abraçados e com as pernas enroscadas no banheiro. Teu pau murcho e minha boca morna. Decadência. Minha existência presa numa coleira arrastada pelas ruas. O teu fetiche é me ver cair até meus ossos não conseguirem mais suportar o peso do meu corpo.

Eu queria saber escrever com a delicadeza violenta dos pés de uma bailarina sobre meus dedos. Mas você pede bate-mais-uma-pra-mim e antes-de-engolir-me-mostra e você gosta quando engulo a acidez do teu egoísmo e você gosta de ver a minha miséria, assim, exposta, e depois cospe em cima. Você não violentou apenas meu corpo. Você não consegue ver os hematomas. Você violentou a minha existência. Eu conheci o inferno que queima sem fogo. Nenhuma oração foi capaz de me salvar. Eu me benzi sessenta e nove vezes. Foi inútil. Eu não sei se estava dentro ou fora nem a porta eu conseguia encontrar e agora estou perdido nesse limbo entre o passado e o presente, mas talvez eu esteja escrevendo um oráculo e prevendo tudo que vai me acontecer. Não! Outra vez não. Não vais me foder sem antes alcançar o orifício da minha alma, sem antes morrer em mim e comigo sepultar como se sepultam as sementes.

Queria abrir um buraco no papel pra me enfiar inteiro – e não só esconder a cabeça – pra me proteger dessa vergonha e desse desastre que somos nós. Desisto. Escrever, às vezes, é como estuprar a si mesmo tentando romper o hímen que protege as feridas, as dores mais doídas e as cenas mais escurecidas para não cegar a visão de quem já viu mais do que deveria ter visto em vinte e quatro anos e faz um ano que não nos vemos, mas você vem me visitar e deposita sobre meu corpo o peso do vazio de algo que não foi, de algo que, talvez, jamais seja. Eu sou a fera escondida atrás das grades dessas palavras. Escrevo para que você saiba um pouco de mim sem que isso te machuque. Talvez a liberdade não exista.