quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

três dias antes faltam


ninguém ainda está vestido de branco porque
faltam três dias e você rezou escondida
para que desse tudo certo, mas ninguém
abriu as pernas depois que as portas se fecharam
atrás de nós o passado rasteja pacientemente
parece que somos tartarugas carregando
um pesado casco sobre as costas
você sorri e posso distinguir teu riso
: é de dor
talvez o passado nos alcance
vinte e oito de dezembro minha cabeça está latejando
esse dia continua desacontecendo enquanto ninguém
se aproxima se estende sobre mim e me toca
sinto gosto de sal mesmo estando de jejum
"ninguém te toca, porque você é feito água-viva:
você queima" uma boca estranha me diz
sinto ódio e quero vomitar não estou de ressaca
quantas ondas do mar você pulou?
repito que faltam três dias e você insiste
em me desejar feliz ano novo quando este ano
ainda não acabou não posso rasgar o calendário
não posso parar de contar os dias
as gotas de remédio pingadas num copo
tentando remediar essa dor que deveria ter doído
há dois meses atrás nós parimos
o amor e esquecemos de cortar o cordão
umbilical agora meu útero está estéril infértil inferno
e
não posso conceber
um novo amor

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Limbo


Não, não feche os meus olhos. Eu ainda não quero dormir nem morrer. Ainda nem é noite e não tenho ninguém para cantar uma cantiga de ninar. Minhas dores só adormecem com a tua voz. A tevê está desligada ou você a deixou no mudo antes de ir embora?  Minhas memórias estão me afogando. Estou só, dentro e fora de um metrô, indo para lugar nenhum. Nem tenho passagem nem sei se sou o passageiro. Talvez eu seja o condutor. Mas eu não sei conduzir essa dança. Você também não sabe.

Uma pedra caiu do alto e ela quase conseguiu segurar com as mãos pequeninas. Não estou dentro nem fora. Onde você está? Eu estou em cima da rocha. Abaixo dos meus pés há água. Muita água. Sinto vertigem. Mas estou apenas sonhando. É uma forma de não sentir dor? Ontem reli algumas palavras soltas. Aquele nem se parece comigo e, ao mesmo tempo, se parece tanto. Decerto estou realmente me afogando e estou sendo só na superfície. Sempre tive tanto pavor de ficar na superfície. Talvez esse que estou sendo agora é apenas aquele do sonho: observando de longe uma menina tentando equilibrar uma pedra gigante com as próprias mãos. A menina tenta ajudar uma outra menina que está à sua frente. Não sei quem é a menina da frente. Talvez fosse eu. Talvez eu sou esse que vê a pedra cair e tenta segurá-la ao mesmo tempo. Não consigo transpor meu corpo até lá. Mas talvez eu já esteja lá. Quando a pedra cai, sinto o seu peso em minhas mãos. É tão pesado e tão angustiante.

A menina já foi uma bailarina. Foi ou ainda é? Ainda é. Uma bailarina nunca deixa de ser bailarina. Sua alma estará sempre dançando pela vida. Viver é inventar coreografias mesmo quando seus pés estão esfolados de tanto andar, de tanto dançar. Parece que nunca acertamos o passo.  Mais uma pedra cai e eu estou e não estou lá. A menina continua tentando segurar a pedra. O peso do mundo sobre as mãos da menina. Talvez viver seja dançar enquanto se tenta equilibrar uma pedra com as mãos.

Será que nós precisamos estar aqui? Precisamos atuar nessa cena? Parece que estamos tentando desesperadamente mostrar o quanto somos fortes. Talvez sejamos fortes, mesmo quando não conseguimos segurar as incontáveis pedras que caem sobre nós. Estou cansado de carregar esse peso. Estou cansado de permanecer aqui, imóvel e intacto. Não estou acordado nem sonhando. As dores também se cansam de doer. É por isso que continuamos dançando mesmo quando nossos pés já estão em carne viva.

Essa insistência em negligenciar o vazio. A imensa cratera que se abriu no meio do peito quando você partiu. Tento inutilmente cobrir o vazio com a mão. É tão fundo. Vertigem. Caio. Não há como parar a queda. Nem como amparar o desastre. Você não sai daí de cima, porque é mais confortável esperar que um deus te estenda os braços e te salve. Você eu nós poderíamos saltar do alto dessa pedra. Poderíamos mergulhar. Você sabe que eu não sei nadar, mas eu quero o risco de me lançar no que eu desconheço. Preciso saber quão profunda a vida é. 

sábado, 23 de dezembro de 2017

Shake it out


é muito pesado para você carregar sozinho
as coisas têm o peso que damos para elas
você não acredita em nada
mais uma vez estou molhando
a ponta dos meus dedos - mas não é
na água benta -
é na vodka que meus dedos se umedecem
me benze mais uma vez me livra desse demônio
eu preciso dançar, mas tudo continua pesado
você me balança de um lado para o outro
como se alguma coisa fosse cair de dentro de mim
mas não cai nem ao menos uma gota se derrama
você ainda me ama? faço o sinal da cruz
não precisa responder
prefiro o silêncio que antecede o fim
a ausência exposta na porta fechada e
shake it out shake it out
livre-se disso, menino
se você ainda não entendeu
então foda-se!
meu copo já está vazio

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Vinte anos depois

Foto: Hélio Beltrânio

eu não sei qual é a sensação de entrar no mar eu gostaria de saber o que eu senti quando eu tinha apenas cinco anos e pela primeira e única vez entrei no mar o mar talvez tenha entrado em mim com tanta força que doeu o mar deve ter doído em mim e entrado e saído com tanta força com tanta fúria com tanta sede de conhecer a imensidão do meu vazio salgando limpando lavando o cheiro o aroma o gosto na boca na pele queimada algumas bolhas d’água o mar entrou em mim o mar me desvirginou o mar invadiu a areia da minha segurança eu criança longe do porto o parto das águas o retorno o regresso esse é o ponto onde uma epifania ascende em minha memória a única lembrança que tenho do mar são as bolhas em minha pele branca uma eclosão uma erupção o mar entrou o mar saiu nem bateu na porta varreu tudo em volta ninguém conseguiu conter as ondas do mar entrando dentro fundo o mar invadindo tudo menino não sabe mais ficar na areia sem destruir castelos o mar continua entrando em mim mas não tenho bolhas para contar histórias furadas todas bolhas mas o mar não saiu de mim


sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Estranhos não podem entrar no paraíso

Foto: Hélio Beltrânio

às vezes eu sou tão precoce que vivo antecipando textos e poemas na minha cabeça sobre momentos que ainda vou viver e antecipo também o momento e a sensação que terei naquele dia. esse texto talvez seja também uma antecipação. meus olhos estão se fechando involuntariamente. é estranho. mas sinto que preciso escrever de olhos fechados. fechei-os por alguns segundos e, quando abri, não havia errado nenhuma palavra. é estranho.  quando estou com os olhos abertos, erro as palavras com frequência. na escuridão eu sempre consegui ver melhor. na escuridão eu sempre consegui ver com mais clareza. não estou falando de morte, mas me parece que tudo finda. assim como esse ciclo. assim como água do lago de Narciso foi findando até secar. Narciso não tem mais onde se ver. Narciso está mergulhado no vazio. Narciso é o próprio vazio. Narciso é a boca sempre aberta esperando uma gota de água. estamos tão sedentos. é a sede que nos empurra para a vida, para o próximo mergulho, para o mistério que há depois de uma porta fechada. eu mergulho até no que já está seco. nem que depois do mergulho eu rache a minha cabeça na rachadura da terra e meu sangue vertendo escorrendo penetre as fissuras. eu me liquefaço para encher o lago, o buraco, o vazio. eu encho o lago para que Narciso possa se ver outra vez. eu como com tanta pressa que até me engasgo. você me come com tanta pressa que acabo ficando atravessado em tua garganta como uma espinha de peixe. é sexta-feira e ninguém mais é santo. você não consegue falar porque estou atravessado em tua garganta e o padre está esperando você confessar os teus pecados e o tempo está passando e o padre está impaciente e tentando abrir as portas do inferno para te enfiar lá dentro, porque no paraíso nem tu nem eu podemos entrar

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Acordamos tarde


essas manhãs de domingo beijam tocam desfazem desmontam desmentem a procura da gente em frente há uma nova dúvida as unhas feitas tingidas tentando cortar rasgar afiar no silêncio áspero na ausência do outro tão morna tão morno um mar brando manso calmo quase morto o toque só precisa atravessar.