quinta-feira, 7 de junho de 2018

"Deixe o Pelicano voar livre", por Arian Dialectaquiz Santos

Foto: Francine Murara

Pelicano, o livro de poesias de Rafael João, lançado pela editora paulistana Fractal, pousou em minhas mãos numa noite gelada de sábado.

Na vernissage de lançamento o autor, um rapaz jovem e sorridente, estava nervoso e tímido. No processo de escrita percebe-se que não há qualquer amarra ou timidez. Rafael João escreve com a alma, usando o sangue a bombeado pelo coração inquieto como tinta.

Logo no começo, como se avistássemos a ave vindo em nossa direção, há a capa. Minimalista, com desenhos contínuos, que se unem de várias maneiras diferentes dependendo do ponto de vista, formando outros, sobre um fundo em tons de azul, tal qual o céu onde voa o Pelicano, ou o oceano de onde a ave se alimenta.

As páginas espessas e macias são como as penas da ave. Brancas, mas que permitem às diferentes iluminações criarem sombras e nuances agradáveis aos olhos, bem como a fluidez da formatação. Rafael escolheu, talvez, não inserir letra maiúscula alguma, talvez por não existir superioridade ou marcação de força numa poesia; talvez por buscar a modernidade.

Modernidade. A palavra que consegue definir bem as poesias do autor baiano. Não encontramos sonetos, odes ou éclogas, nem estrutura alguma clássica de escrita, estruturas que amarram o pensamento à forma. A modernidade traz a liberdade de focar-se no conteúdo, no que vem de dentro, das ideias mais profundas ou mesmo as superficiais que teimam em deixar nossos pensamentos cotidianos.

Concomitante à modernidade, há a intensidade. Os versos são preparados para perfurarem a mente do leitor, buscando conversar com as certezas e dúvidas mais antigas, seja a respeito de sentimentos, ou mesmo de conceitos próprios. Essa intensidade faz, em muitas poesias, a leitura não ser fácil, forçando o leitor a ler mais de uma ou duas vezes, em dias esparsados, para conseguir absorver o conteúdo emocional.

É perceptível que Rafael abriu seu coração e alma para este livro, colocando tudo de si, e mais um pouco dos outros nos textos. Dos outros trouxe a luxúria, o sexo, a potência da raiva e do amor. De si, percebemos a inflexão e reflexão, o sentimento de devaneio e de muitas vezes sentir-se deslocado, ou a alegria de saber exatamente onde está.

O livro grande para os padrões atuais de obras de poesia traz cento e setenta páginas de arte, em palavras, desenhos ou simplesmente o contraste constante entre o claro e o escuro, o contraste metalinguístico de uma capa minimalista e uma estrutura visual interna barroca que dialoga com o abstracionismo.

Exatamente como a ave título, que voa com sua longa envergadura, pesada demais em comparação às demais aves da família, mas que ainda consegue arremeter-se no mar para pescar, e depois, continuar voando.

Fui, pessoalmente, capturado por uma poesia intitulada “sem nome”, pois foi essa grande sinestesia e busca do paradoxal que vêm de dentro que senti lendo “Pelicano”. Transcrevo esta abaixo e deixo o convite para que aceitei que o Pelicano aterrisse em vossas mãos, e quando terminarem de admirar, deixem-no partir, levando consigo lágrimas, excitação e admiração, que lhe causara na estadia.

sem nome

me roubaram algo que não tem nome
me roubaram algo que não tem forma
e me deixaram deformado

sinto que estou pendendo
– meu corpo alma pele e algo sem nome -
no meio de vácuo vazio seco frio
sou vazio esvaziado no vazio

misturado ao vazio
perco o contorno do meu corpo
não sei onde começo e nem onde
termino a prece muda presa
na boca suturada [...................]

“Pelicano” é uma obra, que assim como a ave, instiga a liberdade.

Arian Dialectaquiz Santos, poeta e romancista.

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domingo, 18 de fevereiro de 2018

Ralo


a palavra está no centro de uma armadilha
e é a última
minha boca está seca de tanta sede
quebraram todos os copos de vidro
você poderia me servir uma palavra direto
da sua boca o oceano escorre lentamente
eu só consigo contemplar
mas não mergulho
e a palavra continua ali – no centro
da armadilha – me querendo enquanto eu
a quero na ponta da língua
a bomba está armada na encruzilhada
um despacho para amarrar sua solidão
na minha: "minha solidão quis segurar você"
Liniker canta incansavelmente e meus braços
sentem a dor do vazio segurando apenas
minha solidão secando secando secando
querendo implorando clamando
para ser ralo esperando a água
desvirginar sua pele escalando ao contrário
até alcançar teus pés e
penetrar
todos
os meus buracos

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Por que você não sai do útero da sua mãe?

Foto: Hélio Beltrânio

eu queria escrever sobre você, sim, eu queria me afogar no mar. ah, eu queria que as águas me engolissem e penetrassem cada poro do meu corpo. iemanjá não quer mais tuas flores – nem tuas oferendas. não vou me sepultar agora. porque a vida, ah, a vida está se estendendo à minha frente. o mar não é vermelho, mas ele se abriu. deixando um caminho para você voltar. essa noite caiu de quatro no meio do meu dia eu não sei quantas horas são. mas a mãe esqueceu de abrir as pernas quando o útero estava contraindo. por que você não sai do útero da sua mãe? angústia é uma pergunta emudecida. agora eu tento sair. as paredes. as quatro paredes e o chão e o teto. tudo é tão apertado mesmo eu sendo tão pequeno. eu não estou no mar, mas eu sinto a água na ponta dos pés. não preciso dançar para chover. essa saudade é chuva ácida. não fizemos a cama. achávamos que iríamos voltar. não voltamos. a cama continua desfeita. assim como o(s) nós que um dia fizemos. o que você fez nos últimos dias? sobre qual pele você derramou a sua solidão? eu não derramei a minha. não consegui escapar. não há escapatória. só queria escrever sobre você, mas quebrei meu espelho durante a madrugada. insisto em andar no escuro. ermo. tão cedo. o mar me engole. pequenos goles. depois de (me) regurgitar estou de volta. a areia não é movediça, mas não me sinto seguro. ainda. me recordo de um sonho. eu indo, eu entrando, eu vendo o mar. dizia, angustiado, que iemanjá não poderia fazer isso com você. mas não sei o que ela não poderia te fazer. depois eu estava no mar. eu me via entrando no mar. eu me via e te via e eu via nós dois vestidos de branco e eu ainda via o mar e eu podia sentir o mar mesmo vendo a cena. aquele corpo realmente era meu? aquele corpo que queria o teu corpo era meu? teu corpo era teu corpo e teu corpo queria o meu? aquela angústia que antecede um abraço era minha? ou estávamos tão próximos que eu podia sentir a tua angústia? a proximidade poderia me confundir os sentidos e me fazer acreditar que aquele corpo teso, diante do teu corpo, era meu? eu não sei o que é meu nem o que é teu. mas logo estávamos abraçados. uma brancura uma luz uma vertigem. ainda podia ver o mar por cima dos teus ombros e eu te dizia para deixar o passado passar e eu te pedia para deixar o mar levar o passado e o passado insistia em ficar aqui, entre nós – e laços – enquanto estávamos abraçados. tudo girava e eu já não observava mais a cena. eu estava nela. como numa possessão eu já estava dentro do meu corpo. aquele corpo era meu e o teu corpo era teu. mesmo tendo um tecido separando nossos corpos eu podia sentir. o passado permanecia ali. você permanecia ali. como dois mundos que acabaram de se encontrar. não colidimos. nem oscilamos. tudo girando. girando depressa demais. meus olhos cerrados, mas eu podia sentir a luz que emanava dos nossos corpos. nunca fomos um. estávamos perdidos no meio da luz. quando tudo se apagou eu abri os olhos. as paredes voltaram a ser paredes e uma mão tocava gentilmente meu rosto tentando me reconhecer e me lembrar que eu ainda era eu e a mão tentava me consolar, porque você ainda era você. mas havia ficado no mar. ou no útero da sua mãe.

domingo, 28 de janeiro de 2018

Causa mortis



agora eu sei porque esqueci
o teu olhar verde
desnudado desvirginado depurado
tão caro o preço que pagamos por colher o fruto
antes de estar maduro
eu não sei quanto tempo dura essa mordida
mas a boca está sempre esperando mais
um pedaço da minha carne toca a tua língua
o tempo não chegou, mas nós acordamos
antes do despertador despertar o que havia
adormecido em nós há não sei quantos anos
a memória engoliu teus dois olhos e
eu enterrei a minha esperança
antes
da tua boca se abrir eu exumei o meu corpo
para tuas mãos se ocuparem da autópsia
examinando cada centímetro da minha anatomia
dedos rasgando as entranhas cheiro queimando
as narinas não suportam o fedor
mas você continua tentando descobrir
a cama
para encontrar a causa
da minha morte

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Tudo desacontece


as garrafas de vinho que não abrimos
as ressacas que não tivemos e
as dores que não doeram
os silêncios que não fizemos por não suportar o peso do que se tem a dizer
as portas que não destrancamos para chegar e para partir
os lençóis que não amassamos com o entrelaçar dos nossos corpos
o chão que não sujamos com o nosso descuido
os cigarros que não acendemos
o gosto que não sentimos
as bocas que não se abriram tentando vomitar todo lodo, todo nojo
a imobilidade das línguas que não tentam mais inventar coreografias no céu da boca
os infernos que não visitamos mais
a luz que não se acende
as lágrimas que não escorrem mais lavando nossa face na hora da despedida
a alegria do reencontro não mais avistada - ou sentida
a pressa para chegar
o elevador que demora
a insistência na campainha
o latido do cachorro
a tevê no mudo
o ouvido atento
a carta sem remetente
o olho que lê e sente
a resposta muda
eu mudo
mas não levanto nenhuma parede