domingo, 31 de julho de 2016

Alfaiate

Foto: Collin McAdoo

como se arranca o vazio de dentro do vazio quando não se sente mais as próprias mãos? mesmo tendo todos os membros do corpo eu me sinto mutilado. só pertence a mim aquilo que posso sentir? não sei onde escondo tantas perguntas. não suporto o excesso de respostas nem quando todas as perguntas são respondidas. escrever é como costurar. eu nunca consigo enfiar a linha no buraco da agulha. mas continuo insistindo apesar de. vejo um buraco no teu corpo que você não vê. tento me enfiar nele. tento atravessá-lo como se atravessa uma agulha. tento uma duas três quatro cinco e perco a conta das vezes que insisto. posso ver o buraco e posso escutar seu convite mortal. o amor e a morte estão entrelaçados como se pudessem ser um só – e talvez realmente sejam. nós estamos amando ou morrendo? nós estamos amando e morrendo? eu não sei. definitivamente não sei. talvez amar seja um morrer em pequenas doses. você diz que nem tem mais coração por conta das inúmeras vezes que ele se despedaçou. e você sabe o quanto detesto todas as palavras com a terminação ‘mente’. as mentiras estão vazando pelos seus olhos. você não pode conter nem esconder. eu não queria enxergar. piso descalço sobre as farpas das mentiras. você pergunta se não está doendo. não escuto e mais um dois três passos. você abre tanto os olhos que por um momento parece que as pupilas vão saltar sobre mim. e pergunta mais uma vez se estou sentindo alguma dor e agora posso ouvir e percebo que não, não sinto dor e dou mais quatro cinco seis passos e a dor que não dói em mim passa a doer em você e todas as agulhas do mundo atravessam nossas carnes febris e ansiosas. sim, respondo ofegante, sim, agora está doendo, respondo tentando levantar a cabeça para encontrar teus olhos, mas não consigo, abraço – trêmulo e confuso – meu próprio corpo para que o buraco em mim engula toda a dor. mas não engole. a dor continua a doer e acorda dores adormecidas até que, próximas, tão próximas, as nossas peles, as nossas carnes, a nossa alma e nossa miséria, eu consigo, enfim, sussurrar:


deixa-me costurar minha existência na tua para que eu seja uma extensão de ti? 

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Ménage à trois

Foto: Erika Arias

Sinto um gosto tão amargo. Tento engolir com pressa antes que o vômito suba rasgando o esôfago até a superfície e suje toda a casa que agora está limpa e ilusoriamente imaculada: você acha que água pode limpar tudo. Mas, mesmo depois de limpa, a casa permanece suja. Suja de ti. Suja de mim. Suja dele – que desconheço a face e o nome. Sinto a presença dele nos observando como voyeur enquanto nossas quatro pernas, minhas e tuas, se enlaçam furiosamente na tentativa de engolirmos um ao outro até que não exista mais dois corpos nem duas almas.

A impossibilidade do nosso desejo pariu entre as nossas pernas uma angústia insuportável que se arrasta incansável e lentamente como uma lesma viscosa e nojenta até a nossa garganta tentando nos sufocar, tentando nos matar. Prosseguimos em mais um de nossos ofícios procurando algo que nos salve dessa condenação de morar em nossos próprios corpos. A tua fome me amedronta e minha fragilidade estremece contra o teu corpo. Se eu me partir em quatrocentos e trinta e quatro pedaços, você vai me reconstruir?

Um dia eu quis arrancar toda minha pele para proteger tua alma. Mas, às vezes, acho que arrancando minha pele estarei arrancando também minha alma. Ele continua nos observando. Agora tem um riso cínico na face. Ele ri do desastre que somos nós. Crianças tolas, brincando sobre lençóis, com um pouco de fé na existência de alguma remissão. Nada nos redime. Se não pecarmos, o paraíso não abrirá suas portas para nos receber e seus olhos talvez nunca mais se abram para receber minhas pupilas sujas com memórias passadas.

Talvez ele – o desconhecido que nos observa – queira participar conosco desse momento. Eu, que nunca suportei a ideia de um ménage à trois, o aceitaria e o receberia com bom grado entre as nossas pernas e nossos peitos suados e surrados de tanto sentir. Eu o aceitaria se ele fosse capaz de nos salvar. Por quê? Por que precisamos tanto do que está externo a nós para nos salvar? Talvez porque o perigo esteja morando dentro de nós. O perigo não mora entre as tuas pernas. Nem entre as minhas. As tuas costelas são como grades de gaiola. A tua liberdade está aprisionada. A minha se soltou – forasteira – para pousar no ninho escondido em teu peito onde havia uma armadilha. Finjo que não vejo.

Eu não quero ser salvo.

terça-feira, 26 de julho de 2016

Abalo sísmico


respiro com dificuldade
nunca estive tão perto de mim
como estou agora com a face
contra a porta trancafiada
'ninguém pode abrir
uma porta
sem fechadura'
você me diz impassível
como se nada nesse mundo insano
fosse capaz de te abalar
eu te odeio
apenas um segundo antes
dos teus lábios contornarem
o meu abismo
todo protegido e seguro
não tens medo de altura
mas nunca se entrega
ao próximo salto
você não teme a mim
temes quem você será
depois de despencar
no desconhecido velado
no meu abraço
: abalo sísmico
você arredio se afasta
e eu louco e desavisado
do perigo posterior ao ato
esmurro com meus pequenos
punhos fechados com força
até te quebrar
até te derreter
com o calor da minha raiva
até poder te beber
em pequenos goles
para não acabar


e entorpecer
dores agudas
misteriosas
doendo
em lugares
que desconheço
em mim.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Sente?


– Fique o mais longe possível.
Mas não vá embora.

– Eu não te entendo.

– Então me sinta.

domingo, 24 de julho de 2016

Imolado


estou dentro de um quarto escuro. não sou homem nem mulher nem tenho sexo. há um quarto escuro dentro de mim. não há paredes. o vazio vazou através das rachaduras. a estrutura cedeu. mas eu não cedi. permaneço imóvel no modo repeat. escrevo e falo sempre das mesmas memórias e das feridas que se cansaram dos meus dedos que não sabem se querem curar ou abrir ainda mais as feridas. há folhas suficientes para conter o nosso sangramento? “você parece profundo”, alguém me diz. não é uma piada, mas poderia ser. tenho medo que minha alma seque e todas as vezes que senti a sequidão se aproximar, cavei mais fundo um poço à procura de mais alma, de mais água, de mais vida. não foi um jogo. ninguém ganhou. ninguém perdeu. nós nos perdemos. e emudeço para não escrever o que já foi escrito. para não parecer em vão. para não cair no vão que separa minha boca dos teus ouvidos. o imenso vão que separa meus dedos dos teus olhos. dilate-os para comer minha carne imolada aqui: em cada palavra. procuro uma sede que se sacie em mim.