quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Des(corpo)rado

Foto: Hélio Beltrânio

Há coisas na vida que construímos sem usar as mãos e há tantas outras que destruímos com a força das próprias mãos para sentir o peso do que se era e do quanto se estava enrijecido e preso dentro de um molde. Por que, às vezes, a vida parece estar retida em algum lugar que não sabemos dar nome? Eu dou nome de corpo. Minha relação com meu corpo - e consequentemente com o corpo do outro - entrou num processo de mudança, uma nova (re)visão. Não estou falando de sexo, mas talvez esteja também. Não estou falando de quebra de paradigmas, mas talvez esteja também.

Eu não sabia onde a minha vida e a minha existência estavam represadas até perceber que a superfície de mim - o corpo - não era tocada, acessada. É, eu não sei fazer a dicotomia (ainda). Se me tocam o corpo, espero que esse toque mergulhe também em minha existência penetrando todos os muros até encontrar a minha alma. Nós não somos mais tocados - nem tocamos - com o cuidado de quem toca o sagrado. Não, eu não estou tentando construir um tabu ou reforçar paradigmas religiosos. Para (vi)ver é preciso tocar. Se conhece e se vê mais com a ponta dos dedos ou com as pupilas dilatadas ou no escuro onde o (br)eu não é o limite.

Algumas pessoas conhecem mais o próprio corpo na dor. Se dói é porque estou vivo. E esse talvez seja só mais um clichê. Mas a dor pode nos desmembrar em muitos. Mas você sabe onde dói? Às vezes a dor fica abafada no fundo do peito querendo doer. E chamo isso de angústia. Uma dor que não consegue doer. Angústia, pra mim, é alma represada, é não ter onde desaguar, é não ter onde vomitar quando estou de ressaca, é uma ferida esquecida. O corpo diz tanto do que está imerso dentro si. Mas, às vezes, nós ignoramos os sintomas e colocamos os demônios para dormir em vez de exorcizá-los.

Eu queria saber dançar com a mesma leveza de uma bailarina num palco. Solitária, mas livre como uma borboleta batendo as asas. Eu queria fazer um ritual. Deitar meu corpo sobre o altar do mundo, onde os corpos das abominações são marginalizados e marcados como pecado, e deixar que a vida me toque mesmo sabendo o quão violento seu toque pode ser. O que antecede a nudez? Quando nos desnudamos estamos realmente nus? É dolorido aceitar a crueza que o outro nos oferece. Sexo é um pedido de socorro, uma tentativa de não sucumbir. Orifícios são saídas de emergência. Mas quem pode nos salvar de incêndio do que somos?


A liberdade vez em quando me parece tão pesada. Talvez seja por isso que a alma carece de um corpo para ser alma, para ser vida, para ser existência, para ser. Parece que há sempre um limite e que nunca conseguiremos chegar no fundo. Talvez seja nossa ânsia em sobreviver. Porque, depois de mergulhar, não se sabe o que vai encontrar. Não sei se desaprendemos a amar. Pode ser medo. Medo de morrer, porque o amor e a morte estão tão próximos que parecem ser um. Ontem eu morri um pouco e me deixei morrer, mas não fui para a sepultura. Morri sobre outro corpo, em outras pupilas, entre os lábios ávidos de outra pessoa. Não quero uma língua que lamba apenas minha pele. Quero uma língua que se atreva a lamber minha solidão até sorver o meu gosto. Quero a violência da delicadeza e o peso da leveza. Quero dançar até meus demônios fugirem de mim. Quero ser mais leve - mesmo carregando o mundo sobre os ombros.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

A fera

Foto: Hélio Beltrânio

risque um fósforo nas suas virilhas
acenda o cigarro na minha boca
um homem deixou um choro de criança
recém-nascida
o mundo não se afogou no seu umbigo
eu enterrei o meu, mas narciso não morreu
meus pulsos dedilhados por teus dedos
poderíamos morrer de amor
mas é tão patético e frio
ninguém toca tão raso como você
não se proteja depois de cair
do décimo terceiro andar e o vigésimo homem
abriu as cortinas antes do dia abrir as pernas
e parir a noite na esquina da 25 de março
ninguém vê ninguém
perdi a conta de quantos orifícios tenho
no corpo vazios impreenchíveis
não mergulhe se quiseres voltar à superfície
eu não escrevo porque sei escrever
escrevo porque a morte me chama e agora
não posso dizer sim eu só posso olhá-la
contemplando o abismo irreparável no papel
as grades das linhas tentando prender
a fera machucada tentando se soltar
tentando se livrar e sem carne
para se alimentar pra não morrer de fome
come
sua própria carne na mesa sem facas
afiadas as palavras ditas por sua boca
mórbida
costuram suas feridas em cima
das minhas cicatrizes

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A morte é um elefante sobre nossos ombros

Foto: Hélio Beltrânio

Não leia minha mão nem veja a minha sorte. Quebrei sete espelhos quando fiz sete anos. Não me machuquei – por fora.  Faça as contas para saber quantos anos ainda me restam de azar. Eu não sou supersticioso, mas, de tanto você me falar de sorte e azar, passei acreditar que estou afundando lentamente nisso que você chama de azar e eu, ironicamente, chamo de sina. Sina e destino estão entrelaçados? Acordei pensando que não pode ser dessa forma, não pode começar e acabar, assim, como todas as coisas acabam, findam, se partem como os setes espelhos se partiram.

Não é possível que eu tenha aprendido a me equilibrar numa bicicleta apenas aos dezoito anos enquanto um elefante já montava sobre meus ombros e me curvava as costas e se equilibrava com maestria sobre mim. A morte é um elefante sobre nossos ombros, eu pensei ontem depois da enxurrada de notícias. Como podem as pessoas continuarem lendo as notícias, vendo as fotos, escutando as reportagens? Como podem os humanos não sentirem o peso do elefante sobre seus ombros? Como pode a vida passar distraidamente pela morte que está sempre com sua boca aberta, com dentes de sobra para nos comer inteiros e com suas garras tão bem afiadas. A morte não é tão poética como parecia?

Dia desses sonhei que uma mulher me matava. Sim, ela me cravava algo no peito e depois tudo se perdeu embaixo da escuridão. Acordei pedindo socorro. Mas ninguém ouviu, acho. Será que estamos a todo o momento pedindo que alguém nos socorra da morte? Será que essa indiferença diante da morte não é apenas uma forma de negar a nós mesmos o quão frágil somos? É a fragilidade de um fio que nos permite estar ancorados aqui. Queria me lembrar de outro sonho. Queria lembrar das pequenas e minuciosas mortes que venho experimentado até aqui.

Você não sente o fedor dos cadáveres esquecidos dentro do seu próprio corpo? A morte, às vezes, carece de um ritual. A despedida, o silêncio, o fechar das pálpebras, o calor de uma carne pulsando cedendo espaço para a frieza da finitude. Por que as vidas são tão breves? Uma pessoa chega e logo parte. Mas continua fisicamente viva. Continua pulsando vida fora do nosso corpo. Você não sente o fedor dos cadáveres em decomposição dentro do seu corpo? Quantas vezes eu já morri e esqueci de me sepultar para poder renascer. Sepultura é onde tudo termina: sejam as vidas, sejam as histórias, sejam os amores. Minha mãe me olha como se quisesse me engolir de volta para dentro de si. Não tenho medo. Mas talvez esteja apenas confundindo meu desejo com o dela. Talvez eu queira que o desejo dela seja o meu. E não é. Porque mamãe, às vezes, está tão próxima e ao mesmo tempo tão distante. Quero gritar pedindo socorro. Tenho medo de deixa-la surda.

Gritamos dia após dia e nem ao menos nós mesmos nos escutamos. Ontem escorri tudo pelo ralo e o senti vomitando de volta pra mim. Sinto que escrever é como vomitar compulsivamente às 4h da manhã após ter bebido descontroladamente. Não posso reter em mim. Cada palavra é um fiasco de vida – e de morte – que cai sobre o papel. É desvirginar. É desposar. É foder consigo mesmo quando a mão está seca e o pau não está rijo e a boceta não está lubrificada, mas você insiste ainda que esteja se machucando e sangrando. A dor entorpece a si mesma. É uma maldição sentir?

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Abominação

Foto: Hélio Beltrânio

quanto eu tenho que pagar pra ser quem sou?
me monto com as palavras datilografadas
na máquina velha de escrever
passo rímel e delineador escondendo a lágrima que nunca
escorreu quando a mão se ergueu
sobre mim secou o grito de todas as vidas
envenenadas esmigalhadas esquecidas
não tenho coroa de flores nem de espinhos
estou coroado pelo mundo como a pior
abominação o pecado que o padre
não quer absorver e eu pecador não quero
esquecer o pecado de ser livre
me dispo do meu nome onde você me põe
um rótulo
escondo bem mas muito bem escondido
o meu sexo entre as pernas
não sou homem não sou mulher eu não
sou e sou agora porque não caibo
dentro do confessionário
mas confesso que fui expulsa do paraíso
com eva e a serpente rastejando entre
nossos pés adão me leva para onde
a ferida ainda não cicatrizou
o pecado que ninguém perdoou
humanidade que não se cura não se lava
mas suja a minha existência corrompe
a minha dignidade por ver em mim
um eu que reinou

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Excremento humano?

Foto: Hélio Beltrânio

eu quero transcender o papel
acender o fogo sem me queimar
para quê? me responda sem abrir a boca
abrir minhas pernas sobre a brancura
da folha parir o que sou sem cortar
o cordão umbilical que nos une
humano
divino
dilúvio
a arca sem noé
profano
santo
sem altar sem velas
anjos sem asas
caídos infernos desabitados
sagrado
abençoado
amaldiçoado
o paraíso não me quer
puro
puto
pecado
veneno
remédio
o verbo amassado
no chão no lixo na sarjeta
o córrego as fezes as sobras
e as sombras dos transeuntes
passando pesando pisando
sobre mim sobre ti sobre nós
marginalizados
atados ao corpo morno
coberto de vômito
a ânsia o desejo a fome
os olhos caindo das faces
quase alguém me vê
quase
quase
quase sou humano de novo
eu queria caber no útero
de tudo refazer o mundo
porão escuro
mofo
prisão sem grades
a vida que se parte
em cada esquina eu me dobro
em sete dias talvez eu volte
outra vez 

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Coito interrompido

Foto: Hélio Beltrânio

Um sim pode amolecer uma pedra no meio do caminho. A boca do mundo se abrindo lentamente para mim. Não tem dentes para mastigar. Não escutamos sinos, mas alguém diz amém, alguém diz que o fim se aproxima e não há como se proteger, porque a realidade explode na nossa cara e nossos braços estão postos para trás como numa paralisia do sono. Mas nós estamos acordados, não estamos? Acontece assim, como aconteceu aos cinco ou seis anos, ao atravessar a rua, mamãe me ensinou a olhar para os dois lados antes de ir, olhei para um lado, mas, quando olhei para o outro, o mundo se perdeu debaixo do breu e a morte quase me beijou e me acordou da vida. Um sim nos desperta da morte e faz cada músculo do nosso corpo doer. Suas unhas pontudas rasgam a minha pele e a mortalha que me cobre. Estou tentando atravessar a rua e você está do outro lado. Lembro que devo olhar para os dois lados.  Não lembro mais quem me ensinou. Olho para um lado. Um passo. Estilhaços sobre o rosto. Ninguém pode mais se proteger do estrago. Tenho medo que você não me reconheça depois de ver meu rosto todo ferido. A minha face em tua memória pode ser uma ferida mal-curada. Mas nós mergulhamos de tão pequenos que somos na brecha na rachadura no meio do concreto. Inferno é nunca desatar os nós que prendem a solidão ao seu próprio corpo. Por que você ainda está rezando? Deus tem medo de você. É o nosso ritual e o vento levanta as toalhas postas sobre a mesa e não há oferendas e há só uma solidão sob(re) outra solidão procurando a porta de saída e a porta de entrada se abre como a boca se abriu no início. O ponto final não finda. O ponto final é um abismo que se abre após a última palavra escrita. O ponto final foi de onde d(eu)s começou. É escuro e mudo na extensão de suas bordas. Flertamos. Deslizamos a palma das mãos sobre a superfície. As minhas mãos estão sempre tensas e rígidas. Talvez até aqui eu tenha apenas tocado corpos trancados. Metemos alguns dedos para dentro do ponto final. Arde? Antes que sangre tiramos os dedos. Um coito interrompido. No meio da rua havia um ponto final. Eu atravessei.

domingo, 13 de novembro de 2016

Down down down


cantarei as mais belas canções para você
seu nome se estende por todo meu corpo
como um manto me livrando do frio
por que a tristeza está tingindo
esse domingo? mentimos tanto que a língua
se prendeu ao céu da boca e não solta
mais uma duas treze horas a chuva ainda não secou
a cidade ainda está cinza os corações ainda estão
duros: verdes demais para poder colher
e comer no fim do dia as mágoas doem mais?
acho que sim
quanto maior o espaço, mais eu me sinto apertado
eu fico aqui sobre essas notas agudas
teus dedos poderiam afinar minha existência
mas tens tanta pressa que as cordas se partem
cante três vezes a mesma canção ao piano
antes que o mundo adormeça e eu esqueça
que eu sou eu e que você é você
e que tudo isso se perde quando o dia
rompe o hímen escondido entre as pernas da noite
sem dor porque até a dor se cansa
assim como todas as almas se cansaram de sustentar
esses corpos que vagueiam debaixo de seus
guarda-chuvas enquanto a chuva não cessa
meu vazio e(s)coa
down
down
down
na tua boca

domingo, 30 de outubro de 2016

Ressaca


Quero ler a poesia que corre pelas tuas veias e rasga as artérias do teu coração. O amor ainda sobrevive embaixo dos escombros. É tão pesado depois que você vai embora e ainda deixa a porta aberta e as janelas escancaradas sem cortinas nem persianas. O vento que adentra o espaço vazio atravessa minhas costelas. Quando você volta? Quando eu volto? Estou desabitado. Meu corpo é cova, sepultura aberta, sem flores. Você ainda consegue respirar? Eu fumei uns sete cigarros e meus pulmões se comprimem. Era mais confortável respirar com minha boca na tua. Ainda sinto o gosto amargo. Parece que bebi por dias a fio e estou numa ressaca interminável. Por que eu continuo escrevendo se até as palavras estão abandonando meu corpo? Solidão é sina? Recito uns dois poemas que escrevi há um ano atrás. Foi pra você que nem tem mais nome na minha boca. Escrever é se automutilar. Toco a ferida insistentemente, mas não dói. Escrevo, mas ainda não me sinto vivo. As palavras chegam no papel como um eco. Escrevo a sete palmos. Escrevo tentando voltar de onde nem sei que parti. A memória fica fragmentada como a alma - quando o amor morre. Não tenho mais pedaços para juntar. Quem vai chover sobre meu deserto? Quem vai secar a chuva quando ela vier? Você vai deixar eu me afogar. Eu sei que vai. Eu quero me afogar. Sem possibilidade de salvação.

domingo, 16 de outubro de 2016

Insolação


hoje atravessei a cidade inteira
minha pele quase se desintegrou embaixo
do sol
não há mentiras que fiquem escondidas nem sombras
onde eu possa (me) esconder
teu olho descansa aqui onde a memória
ainda não existe mas a saudade queima
como uma insolação aos cinco anos
numa praia esqueci de me proteger
a dor costurou em mim o medo
mas eu ainda quero me queimar
debaixo das tuas retinas tão límpidas
esqueço quem sou até ser de novo
uma criança de cinco anos construindo
castelos-de-areia só pra destruir
depois
ir chorando enraivecido para um colo
onde o destino não aconteceu e
o teu sim colidiu com o meu quando
o sinal ainda estava vermelho
vou enxugar minha alma
na tua pele afundarei todos os meus barcos
porque não há mais onde
chegar

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Feito de carne

Foto: Hélio Beltrânio

você está sentindo? você consegue sentir isso? você pode sentir a leveza dessas coisas que pairam agora ao meu redor? chamo de coisas, porque não consigo nomeá-las. a poeira do tempo recobrindo tudo. você é capaz de sentir como eu estou sentindo agora? se não está, você poderia, então, me possuir como um demônio se apossa do corpo de uma pessoa por meio de uma possessão. você poderia sentir em mim, dentro de mim, embaixo da minha pele.

abrindo uma fresta no meio do mundo eu ainda posso enxergar as pessoas indo e vindo sem sangue para marcar seus passos e deixar rastros atrás de si. o amor não acabou, criança. as pessoas só não querem mais sangrar. e eu estou quase morrendo de tanto que sangrei. vez em quando a tristeza me abate por morrer e não ter onde me sepultar. você sempre diz que tenho, sim, tenho meu próprio corpo. eu sei. sabemos. sei que estou agora, dentro do mesmo metrô, indo para o mesmo lugar, no mesmo horário. sei que estamos, todos, engaiolados, vivendo sob uma liberdade forjada. eu nasci com algo em meu peito que me condena e me salva todos os dias. parece um imã que atrai desastres. minha irmã acabou de quebrar um copo de vidro, mas eu ainda estou no metrô e não sei se chegarei a tempo de juntar os cacos. eu nunca chego no horário marcado. alguns desastres são inevitáveis. um homem, que não tinha para onde olhar, olhou para mim. colisão no meio do dia. mas eu não me quebro. nem ele se quebra – imagino que não. o seu olhar faz com que eu sinta nojo. engulo a náusea e olho para o relógio ostentando a mesma hora e os mesmos minutos. os ponteiros se movem e nós continuamos no mesmo lugar, na mesma gaiola, abraçados à nossa própria solidão como um mendigo se cobre com sua manta e a sente como uma extensão do seu próprio corpo.

tudo cheira a mofo. penso em ligar para reclamar. esse vagão sempre está fedendo. desisto sabendo que é inútil. prendo a respiração até que na próxima estação as portas se abram e eu possa respirar. penso em como seria a minha morte. quase choro. morrer talvez seja nossa última queda. e caímos nos braços do desconhecido como em todos os momentos de nossa vida. muitas almas escorreram nesses bancos e ficaram aqui sobre esses bancos, atracadas nesses ferros, espiando o nada pelas janelas de vidro. nessa cidade de pedra ainda existe alguém que seja de carne? ninguém responde. nem eu consigo pensar numa resposta. temo que não reste mais ninguém. temo endurecer ao ponto de não ser mais eu, mas ser como todos esses prédios erguidos no meio da cidade. o passado está tentando respirar atrás das portas trancadas como se trancam os animais selvagens. temo que as lembranças devorem o presente e a nossa possibilidade de amar outra vez. a cidade continua dura, as pessoas continuam duras, os olhos continuam cegos. e eu continuo, aqui, escrevendo. insisto na palavra, no verso, nos poemas sem rimas e sem nexo. a dor e a tristeza emergem dos poros de algumas pessoas. sinto o cheiro. e a minha poesia escorre tentando amolecer as pedras que outrora eram carne e hoje estão endurecidas. é isso: eu sou carne sobre pedras. insisto!

domingo, 2 de outubro de 2016

Aos teus pés


vamos fingir que sei fotografar
é só ficar aqui de perfil sem foco
depois de apagar a luz sobre a tua cabeça
esquecendo todas as coisas que estão
aos teus pés meus olhos descansam
nos caminhos onde você foi
sem fotografar as fotos foram impressas
na tua alma uma rota desenhada
eu tenho medo de ir e conseguir
chegar no fim enfim estamos perdidos
a mão do acaso é uma lança
atravessando a frigidez dos dias
não existe céu nem inferno nem
precisamos purgar nessa distância
eu lanço mais uma âncora
na tua existência pr'eu não naufragar
nos meus joelhos o peso da embarcação
não estou fazendo uma prece
mas peço sem pedir que você me salve
enquanto escutamos mais uma música
anime les feuilles dans leur danse alanguie
você coloca meus demônios
para dançar sem salto
alto o som para não
escutarmos os gritos
nossos pedidos
se perdendo porque
ninguém nos ensinou
a falar

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Origami

Foto: Ryan Michael Kelly

poderia dizer que meu destino se cruzou
com o teu, baby
mas eu estou sempre com essa sensação
vertiginosa de que vou cair
e caio
sempre no lugar errado bati tambores
depois de quebrar as cordas do violão
esfolando meus pés no chão de tanto dançar
as danças proibidas para tentar
prender você em mim
o sexo machucado escondido
entre as mãos hesitantes querendo
esconder a vergonha de estar só
ferida e sangrenta solidão exposta
recaída sobre a cama violentada
me dobro e me desdobro e me dobro
duzentas e trinta e oito vezes
sobre os teus braços pareço um origami
retorcida a ponto de sentir meus ossos
rangendo como as portas velhas da casa de vovó
se abrindo e se fechando e dando acesso e
expulsando para fora de si a escuridão e mofo
você diz que não suporta o meu cheiro
enquanto eu acolho o teu fedor
na minha pele cicatrizes queimam
“o passado não se afoga
num copo de vodka” você diz lentamente
enquanto tenta se livrar com força
das minhas mãos escorrem a ausência
de todos os corpos um dia esmagados
pelo peso da minha alma
esfomeada
agora devastada
por não ter onde
se alimentar

domingo, 18 de setembro de 2016

Cinquenta e dois anos

Foto: Hélio Beltrânio

por que você não fuma mais?
eu estou queimando na tua boca
uma maldição que perdura cinquenta
e dois anos
estou vestida de branco
mas não vou me casar
não vou dizer sim nem não ao pé do altar
vou enclausurar o silêncio no meu útero
até parir as palavras de todas as almas mudas
que não querem dar respostas que não querem
dizer sins nem nãos fervendo de raiva
quando você me chama de louca de histérica
vou abortar as promessas antes que elas se cumpram
no deserto gemendo convulsivamente de dor
se liquefazendo para saciar sua própria sede
nesse calor de trinta saaras e
de toda a porra morna
incapaz de fecundar a minha garganta
cortada verticalmente com desespero
: há um nó
por que você não para de me perguntar
se quero ou não quero gozar eu quero
sim, eu quero ver você queimando como eu queimei
com a boca toda aberta para mim em dentes
tão apodrecidos quanto a tua alma
pedindo me salva me redime me molha
dentro do mar infestado de águas-vivas
sem saída sem resposta porque eu não quero dar
mais um pedaço da minha carne
pra você
comer

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

O cansaço dos que restaram


Parece que estamos  todos  em carne viva. Pulsamos desesperadamente, sangramos com a força de uma hemorragia interna, queimamos como uma criança com uma febre de trinta-e-tantos-graus sem que se ache a causa da doença. Sim, nós estamos em carne viva. Estamos doentes. E deus nos livre de nos curarmos agora. Todos nós e até os laços desfeitos. Um olhar atravessado nos atravessa até as vísceras. Uma palavra não dita fere nossos ouvidos. Uma palavra espinhosa nos estoura os tímpanos. Queremos escutar melhor ao mesmo tempo em que queremos ser surdos pra não ouvir tanto. Queremos ver com a sensibilidade de quem rumina os detalhes de todas as coisas e, quando conseguimos ver, desejamos a cegueira. Porque ver demais arde os olhos. Um ferro em brasa penetrando nossas carnes e chegando ao fundo. Marcando-me. Marcando-nos.  E vivemos tentando remediar, remendar os trapos, reconstruir os pedaços e abafando a febre embaixo de compressas com água quente e nos cobrindo de pele e de mentiras, porque a verdade não encontra descanso em qualquer ouvido e o céu sente o peso das nossas cabeças. Estamos cansados.

sábado, 10 de setembro de 2016

Há amor em São Paulo?

Foto: Jonas Oliveira

disposto e exposto: rasgo minha garganta
dedilha minhas cordas vocais
componha em mim mais uma melodia
para que se alcance todos os vãos
entre trens-e-plataformas o amor
suporta quietinho num canto assustado
uma banda toca sobre todas as portas
abrindo e fechando depois do sinal
você pode se ferir você pode cair
deus queira que você caia só uma vez
mas pode tocar através de mim
para que a tua melodia rasgue as cortinas
invisíveis e estendidas no ar protegendo
nossas faces nossos olhos tímidos
e todos os abismos sejam penetrados com
o teu som arde em meus ouvidos
sou o primeiro a ouvi-lo
: uma mãe emocionada que acaba de ouvir
o primeiro choro de seu bebê
sou o útero onde fecundas a tua existência
canalizo todas as dores que sentes
dói em mim dores jamais doídas
não há parto sem dor não há beleza
não há o que nasça sem antes ter sido
atravessado pelos dedos e pelas unhas
da vida: esse deus que não recebe incenso
nem oferendas
mas nos rasga nos expõe para o mundo nos livra
até o último trem partir e a estação fechar
o nosso som se calar e mudos possamos
compor uma melodia para que o amor
em nossos peitos volte
a amar

terça-feira, 6 de setembro de 2016

69

Foto: Hélio Beltrânio

Você me amarra sobre a cama e o peso do chão está sobre o meu corpo e eu não consigo encontrar uma lógica nisso que você acabou de dizer. Só não faço você engolir tudo de volta porque ainda estou amarrado ao pé da cama e aos teus pés esfolados de tanto permanecer aqui velando nosso amor em coma enquanto você goza, gritando, sem conseguir dizer o meu nome. Você goza sobre o corpo de outro sobre a cama de outro e amarra outras mãos que não as minhas e prende a minha liberdade sobre seus calcanhares pra que você também não consiga fugir. Quem aprisiona também se torna prisioneiro.

Não há como suportar olhar no espelho e conseguir se enxergar. Resta o desastre e a fúria e a fuga e o estilhaço. A colisão da tua pupila contra a minha. O pavor. A bomba que nunca explode e o gatilho e o tiro que saiu pela culatra. Quase enlouquecendo com o tic-tac-tic-tac desse relógio pendurado na parede. O meu vazio flertou com o teu vazio e nos derramamos e nos afogamos e bebemos tudo que podíamos beber e vomitamos, juntos, abraçados e com as pernas enroscadas no banheiro. Teu pau murcho e minha boca morna. Decadência. Minha existência presa numa coleira arrastada pelas ruas. O teu fetiche é me ver cair até meus ossos não conseguirem mais suportar o peso do meu corpo.

Eu queria saber escrever com a delicadeza violenta dos pés de uma bailarina sobre meus dedos. Mas você pede bate-mais-uma-pra-mim e antes-de-engolir-me-mostra e você gosta quando engulo a acidez do teu egoísmo e você gosta de ver a minha miséria, assim, exposta, e depois cospe em cima. Você não violentou apenas meu corpo. Você não consegue ver os hematomas. Você violentou a minha existência. Eu conheci o inferno que queima sem fogo. Nenhuma oração foi capaz de me salvar. Eu me benzi sessenta e nove vezes. Foi inútil. Eu não sei se estava dentro ou fora nem a porta eu conseguia encontrar e agora estou perdido nesse limbo entre o passado e o presente, mas talvez eu esteja escrevendo um oráculo e prevendo tudo que vai me acontecer. Não! Outra vez não. Não vais me foder sem antes alcançar o orifício da minha alma, sem antes morrer em mim e comigo sepultar como se sepultam as sementes.

Queria abrir um buraco no papel pra me enfiar inteiro – e não só esconder a cabeça – pra me proteger dessa vergonha e desse desastre que somos nós. Desisto. Escrever, às vezes, é como estuprar a si mesmo tentando romper o hímen que protege as feridas, as dores mais doídas e as cenas mais escurecidas para não cegar a visão de quem já viu mais do que deveria ter visto em vinte e quatro anos e faz um ano que não nos vemos, mas você vem me visitar e deposita sobre meu corpo o peso do vazio de algo que não foi, de algo que, talvez, jamais seja. Eu sou a fera escondida atrás das grades dessas palavras. Escrevo para que você saiba um pouco de mim sem que isso te machuque. Talvez a liberdade não exista.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Por que você escreve poesia?


Incontáveis vezes me mantive distante das perguntas. Tentativa vã de poupar minha alma de sorver a densidade de mais uma angústia. É inevitável não cair nessa corda-bamba e a tua mão discreta e descaradamente balança a corda para que eu caia. Você não se envergonha, mas também não ri da minha queda. Você não suporta a minha ousadia e a minha coragem de tentar o equilíbrio mesmo sabendo que sempre vou desiquilibrar e cair. Você prefere a segurança do chão. Eu prefiro estar ao chão somente se for aos pedaços. Eu só sobrevivo nas minhas intermináveis tentativas. Alguém me pergunta: por que você escreve poesia? Nunca haviam me perguntado isso nem eu havia me perguntado. Eu te disse que estava evitando algumas perguntas. Talvez essa seja uma das que eu mais evito. Escrever poesia é como tentar desarmar uma bomba-relógio. A angústia emerge em meu peito como um ácido se alastrando por dentro corroendo todos os meus órgãos. Sinto-a corroer meu esôfago. Sinto que preciso vomitar. Mas nunca vomito nem ouso enfiar o dedo na garganta. Insisto nessa loucura de tentar desarmar uma bomba-relógio implantada em meu peito. Grito. Grito muito alto. Meu grito fica retido na garganta repleta de pus. Meus lábios estão retesados como se estivessem costurados por uma agulha enferrujada. Só há a possibilidade de dizer pelos dedos. Desarmar a bomba enquanto a bomba me diz que o tempo está acabando e escrever trinta e quatro versos compulsivamente e cinquenta e dois poemas sem rimas sem estrofes sem vírgulas nem ponto final com o ímpeto de rasgar tudo depois. Escrever como um bêbado vomitando descontroladamente no corredor de sua casa antes de chegar ao banheiro. A poesia não é educada nem limpa. A poesia é suja. Eu pensei que podia domar a poesia, mas é ela que me monta, me põe uma sela, me aperta entre suas pernas enormes e pesadas, me submete ao seu domínio, me cavalga sem piedade. Suportar os dedos trêmulos escrevendo escrevendo escrevendo e tentando desarmar a bomba e tentando amar e tentando proteger a cara e alma da próxima explosão e explode e detona tudo e todos os ossos se esfarelam e a minha cara não se salva e a minha alma insiste em sobreviver ao estrago e não coloco ponto final porque um poema não finda no último verso nem na última explosão. Viver deve ser sobreviver a essas explosões e mesmo assim ainda que com a cara toda fodida e os ossos todos quebrados e a pele ferida tentar de novo e mais uma vez a ficar cara-a-cara com a morte (e morrer!) e o útero do recomeço te abraçando e te abrigando no escuro para depois, só depois de doer, só depois de se arder como ardem as queimaduras de terceiro grau, ser cuspido abortado vomitado no mundo. E recomeçar o ciclo... 

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Marionete

Foto: Chrus Schoonover

e se eu deixar de sentir?
quem aprisiona também
é prisioneiro

tudo está suspenso
no ar as cordas pendem livre-
mente que somos todos livres
mas tuas mãos me controlam
me dominam como se domina
as marionetes e pesam sobre mim
como as mãos dos deuses pesam
sobre aqueles que se desviaram
queria eu também ser um transgressor
ir por onde ninguém
vai
saber se eu esconder as cicatrizes
memórias ácidas sobre a superfície
da língua teu nome queima
não sei apagar o fogo outrora aceso
acendo as últimas velas
agora
tenho medo da escuridão
da chuva que molha, mas não lava
nem leva
se eu pudesse desaprender teu nome
não me queimaria mais
não me feriria e não
prosseguiria nesse ritual inútil
de tentar me curar
desse ponto
final

domingo, 21 de agosto de 2016

Domingos


estou sempre caminhando na escuridão
tateando com as mãos fatigadas
só procuro porque sei que não irei encontrar
você não consegue apagar a luz
do abajur desalinhado tentando intimidar
meu descompasso: meu passo preso
nesse domingo: limbo interminável e
uma sede ancestral recaiu sobre mim
seu corpo se confunde com a garrafa de vinho
(sobre a mesa sobre a cama a brancura virginal dos lençóis
cavalgando sem perceber a noite
engolindo nossos gritos com suas pernas:
quem gozar primeiro ganha esse jogo sujo?)
ambos me embriagam, mas apenas um
fode a minha alma e
você está selado velado trancafiado
como eu posso ficar bêbado apenas com
um gole? meus dedos se arrastam
pelas tuas costas assim como os teus
acariciam com devoção a garrafa de vinho
antes de abri-la me abro e escuto
o silêncio de todas as bocas mudas que um dia
me beijaram famintas arrancando
palavra por palavra até eu também emudecer
e
esquecer como se diz que apesar
de tanto beber a sede não passou
enquanto o outro já está exausto como se
tivesse corrido em todas as maratonas
e apesar de todos os esforços
nunca
conseguisse atravessar a linha de chegada
você nunca vai alcançar a minha alma
mergulhar na minha lama se limpar inteiro
na minha sujeira cicatrizando meu passado,
but
nada tem passado tudo tem ficado sobre
meus ombros como um elefante monta
sobre um hamster correndo para chegar
a lugar nenhum
dentro da gaiola dentro da roda
como um pecador esquece
sua humanidade e todos os seus pecados
que padre nenhum é capaz
de absolver

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Menina,


acende uma vela
mas reza baixinho
pra deus não escutar
tens medo de ser atendida
e receber tudo que pedes
entre as contas escuras
pendendo dos dedos
frágeis e ásperos
contando os últimos cigarros
"ainda dá tempo de fumar
mais um?" você me pergunta
tragando no pequeno espaço
enquanto queimas
as próprias coxas
por descuido ou deleite na dor
não sei você não sabe nunca
saberemos das cartas amassadas
outras rasgadas e amontoadas
embaixo da nossa cama
pedidos jamais lidos
assombrando
nossas noites insones
onde a solidão nua
e crua
não pode mais
se livrar.

sábado, 6 de agosto de 2016

Indecifrável

Foto: Hélio Beltrânio

você abre o livro com cuidadoso zelo e dedos trêmulos como se estivesse abrindo espaço entre minhas pernas. ou seria o contrário? não importa. a porta está aberta velando um convite mudo. brancas e esguias: revelando o universo e versos enroscados entre os poucos pelos. ansiosas e sedentas como um mar intocado que nunca experimentou o mergulho de um corpo. quando vais mergulhar em mim? teus olhos estão repletos de mãos e dedos incontáveis arranham a minha solidão. é inútil e indolor. quanto mais arranhas, mais me sinto inalcançável. estou enterrado a sete palmos dentro do meu próprio corpo. não suportas a tua impotência diante da minha existência envolta em uma casca grossa e áspera. não suporto permanecer incólume. e prossegues insistentemente nesse teu ofício de arranhar-me e tentar rasgar-me a pele, romper o hímen que protege a minha solidão, alcançar a carne, afogar-se entre os ossos e morrer afogado em minha alma. tudo é cinza. orifícios são labirintos e estás perdido entre o corpo e a alma. a ânsia de preenche-los é apenas a fome secreta de mergulhar em mim até encontrar o lugar onde a minha alma se esconde. estamos brincando como duas crianças brincam de esconde-esconde. quanto mais nu estou diante dos teus olhos, mais estou escondido. talvez você precise me dissecar para encontrar o que tanto procuras. dedos não me alcançam e o teu falo se perde dentro da minha anatomia indecifrável e você se cansa e você insiste em me arranhar com tuas garras até as minhas pernas se abrirem ainda mais como um livro se abre para quem o lê para revelar as letras, as palavras, as frases, os mistérios. há um mistério insondável escondido entre as folhas de um livro – e entre as minhas pernas alvas. eu me abro todo diante da tua fome. eu me viro uma duas três quatro e duzentas e trinta e seis vezes como as páginas são viradas entre os dedos de quem o lê. eu quero que você me leia. e você – desesperado – não sabe mais ler e descubro que você sabe ler, mas não consegue ler o que está entre as minhas pernas e rasgas minhas virilhas e manchas de sangue as tuas mãos e sente o calor escorrer entre os teus dedos e tens medo que a vida abandone o meu corpo e você não tenha mais onde insistir onde mergulhar onde morrer e onde renascer. e, então, no ápice de uma epifania, um estalo, como no momento em que arrancaram o teu primeiro dente de leite, tu percebes que não procuras a minha alma em meu corpo, mas procuras no meu corpo a salvação do inferno em que o teu se transformou. queres violar a minha carne e fazer-me um corte para abrigar-se em mim como se o meu corpo pudesse ser um útero capaz de te salvar do mundo, capaz de salvar-te de você mesmo. abro-me ainda mais como a vagina de uma parturiente prestes a dar a luz a seu primogênito. esse parto não expulsa nada do meu corpo. estou parindo você para dentro de mim. você me cabe inteiro. com ossos e vísceras. recebo-te e te tomo e me fecundas e estou perdido e estamos perdidos porque não há palavra capaz de dar nome ao que sinto. gozamos porque nos cansamos de mergulhar e só encontrar o vazio. a impotência me emudece e suturo o rasgo feito para que ninguém te salve de mim.

domingo, 31 de julho de 2016

Alfaiate

Foto: Collin McAdoo

como se arranca o vazio de dentro do vazio quando não se sente mais as próprias mãos? mesmo tendo todos os membros do corpo eu me sinto mutilado. só pertence a mim aquilo que posso sentir? não sei onde escondo tantas perguntas. não suporto o excesso de respostas nem quando todas as perguntas são respondidas. escrever é como costurar. eu nunca consigo enfiar a linha no buraco da agulha. mas continuo insistindo apesar de. vejo um buraco no teu corpo que você não vê. tento me enfiar nele. tento atravessá-lo como se atravessa uma agulha. tento uma duas três quatro cinco e perco a conta das vezes que insisto. posso ver o buraco e posso escutar seu convite mortal. o amor e a morte estão entrelaçados como se pudessem ser um só – e talvez realmente sejam. nós estamos amando ou morrendo? nós estamos amando e morrendo? eu não sei. definitivamente não sei. talvez amar seja um morrer em pequenas doses. você diz que nem tem mais coração por conta das inúmeras vezes que ele se despedaçou. e você sabe o quanto detesto todas as palavras com a terminação ‘mente’. as mentiras estão vazando pelos seus olhos. você não pode conter nem esconder. eu não queria enxergar. piso descalço sobre as farpas das mentiras. você pergunta se não está doendo. não escuto e mais um dois três passos. você abre tanto os olhos que por um momento parece que as pupilas vão saltar sobre mim. e pergunta mais uma vez se estou sentindo alguma dor e agora posso ouvir e percebo que não, não sinto dor e dou mais quatro cinco seis passos e a dor que não dói em mim passa a doer em você e todas as agulhas do mundo atravessam nossas carnes febris e ansiosas. sim, respondo ofegante, sim, agora está doendo, respondo tentando levantar a cabeça para encontrar teus olhos, mas não consigo, abraço – trêmulo e confuso – meu próprio corpo para que o buraco em mim engula toda a dor. mas não engole. a dor continua a doer e acorda dores adormecidas até que, próximas, tão próximas, as nossas peles, as nossas carnes, a nossa alma e nossa miséria, eu consigo, enfim, sussurrar:


deixa-me costurar minha existência na tua para que eu seja uma extensão de ti? 

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Ménage à trois

Foto: Erika Arias

Sinto um gosto tão amargo. Tento engolir com pressa antes que o vômito suba rasgando o esôfago até a superfície e suje toda a casa que agora está limpa e ilusoriamente imaculada: você acha que água pode limpar tudo. Mas, mesmo depois de limpa, a casa permanece suja. Suja de ti. Suja de mim. Suja dele – que desconheço a face e o nome. Sinto a presença dele nos observando como voyeur enquanto nossas quatro pernas, minhas e tuas, se enlaçam furiosamente na tentativa de engolirmos um ao outro até que não exista mais dois corpos nem duas almas.

A impossibilidade do nosso desejo pariu entre as nossas pernas uma angústia insuportável que se arrasta incansável e lentamente como uma lesma viscosa e nojenta até a nossa garganta tentando nos sufocar, tentando nos matar. Prosseguimos em mais um de nossos ofícios procurando algo que nos salve dessa condenação de morar em nossos próprios corpos. A tua fome me amedronta e minha fragilidade estremece contra o teu corpo. Se eu me partir em quatrocentos e trinta e quatro pedaços, você vai me reconstruir?

Um dia eu quis arrancar toda minha pele para proteger tua alma. Mas, às vezes, acho que arrancando minha pele estarei arrancando também minha alma. Ele continua nos observando. Agora tem um riso cínico na face. Ele ri do desastre que somos nós. Crianças tolas, brincando sobre lençóis, com um pouco de fé na existência de alguma remissão. Nada nos redime. Se não pecarmos, o paraíso não abrirá suas portas para nos receber e seus olhos talvez nunca mais se abram para receber minhas pupilas sujas com memórias passadas.

Talvez ele – o desconhecido que nos observa – queira participar conosco desse momento. Eu, que nunca suportei a ideia de um ménage à trois, o aceitaria e o receberia com bom grado entre as nossas pernas e nossos peitos suados e surrados de tanto sentir. Eu o aceitaria se ele fosse capaz de nos salvar. Por quê? Por que precisamos tanto do que está externo a nós para nos salvar? Talvez porque o perigo esteja morando dentro de nós. O perigo não mora entre as tuas pernas. Nem entre as minhas. As tuas costelas são como grades de gaiola. A tua liberdade está aprisionada. A minha se soltou – forasteira – para pousar no ninho escondido em teu peito onde havia uma armadilha. Finjo que não vejo.

Eu não quero ser salvo.

terça-feira, 26 de julho de 2016

Abalo sísmico


respiro com dificuldade
nunca estive tão perto de mim
como estou agora com a face
contra a porta trancafiada
'ninguém pode abrir
uma porta
sem fechadura'
você me diz impassível
como se nada nesse mundo insano
fosse capaz de te abalar
eu te odeio
apenas um segundo antes
dos teus lábios contornarem
o meu abismo
todo protegido e seguro
não tens medo de altura
mas nunca se entrega
ao próximo salto
você não teme a mim
temes quem você será
depois de despencar
no desconhecido velado
no meu abraço
: abalo sísmico
você arredio se afasta
e eu louco e desavisado
do perigo posterior ao ato
esmurro com meus pequenos
punhos fechados com força
até te quebrar
até te derreter
com o calor da minha raiva
até poder te beber
em pequenos goles
para não acabar


e entorpecer
dores agudas
misteriosas
doendo
em lugares
que desconheço
em mim.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Sente?


– Fique o mais longe possível.
Mas não vá embora.

– Eu não te entendo.

– Então me sinta.

domingo, 24 de julho de 2016

Imolado


estou dentro de um quarto escuro. não sou homem nem mulher nem tenho sexo. há um quarto escuro dentro de mim. não há paredes. o vazio vazou através das rachaduras. a estrutura cedeu. mas eu não cedi. permaneço imóvel no modo repeat. escrevo e falo sempre das mesmas memórias e das feridas que se cansaram dos meus dedos que não sabem se querem curar ou abrir ainda mais as feridas. há folhas suficientes para conter o nosso sangramento? “você parece profundo”, alguém me diz. não é uma piada, mas poderia ser. tenho medo que minha alma seque e todas as vezes que senti a sequidão se aproximar, cavei mais fundo um poço à procura de mais alma, de mais água, de mais vida. não foi um jogo. ninguém ganhou. ninguém perdeu. nós nos perdemos. e emudeço para não escrever o que já foi escrito. para não parecer em vão. para não cair no vão que separa minha boca dos teus ouvidos. o imenso vão que separa meus dedos dos teus olhos. dilate-os para comer minha carne imolada aqui: em cada palavra. procuro uma sede que se sacie em mim.