domingo, 30 de outubro de 2016

Ressaca


Quero ler a poesia que corre pelas tuas veias e rasga as artérias do teu coração. O amor ainda sobrevive embaixo dos escombros. É tão pesado depois que você vai embora e ainda deixa a porta aberta e as janelas escancaradas sem cortinas nem persianas. O vento que adentra o espaço vazio atravessa minhas costelas. Quando você volta? Quando eu volto? Estou desabitado. Meu corpo é cova, sepultura aberta, sem flores. Você ainda consegue respirar? Eu fumei uns sete cigarros e meus pulmões se comprimem. Era mais confortável respirar com minha boca na tua. Ainda sinto o gosto amargo. Parece que bebi por dias a fio e estou numa ressaca interminável. Por que eu continuo escrevendo se até as palavras estão abandonando meu corpo? Solidão é sina? Recito uns dois poemas que escrevi há um ano atrás. Foi pra você que nem tem mais nome na minha boca. Escrever é se automutilar. Toco a ferida insistentemente, mas não dói. Escrevo, mas ainda não me sinto vivo. As palavras chegam no papel como um eco. Escrevo a sete palmos. Escrevo tentando voltar de onde nem sei que parti. A memória fica fragmentada como a alma - quando o amor morre. Não tenho mais pedaços para juntar. Quem vai chover sobre meu deserto? Quem vai secar a chuva quando ela vier? Você vai deixar eu me afogar. Eu sei que vai. Eu quero me afogar. Sem possibilidade de salvação.

domingo, 16 de outubro de 2016

Insolação


hoje atravessei a cidade inteira
minha pele quase se desintegrou embaixo
do sol
não há mentiras que fiquem escondidas nem sombras
onde eu possa (me) esconder
teu olho descansa aqui onde a memória
ainda não existe mas a saudade queima
como uma insolação aos cinco anos
numa praia esqueci de me proteger
a dor costurou em mim o medo
mas eu ainda quero me queimar
debaixo das tuas retinas tão límpidas
esqueço quem sou até ser de novo
uma criança de cinco anos construindo
castelos-de-areia só pra destruir
depois
ir chorando enraivecido para um colo
onde o destino não aconteceu e
o teu sim colidiu com o meu quando
o sinal ainda estava vermelho
vou enxugar minha alma
na tua pele afundarei todos os meus barcos
porque não há mais onde
chegar

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Feito de carne

Foto: Hélio Beltrânio

você está sentindo? você consegue sentir isso? você pode sentir a leveza dessas coisas que pairam agora ao meu redor? chamo de coisas, porque não consigo nomeá-las. a poeira do tempo recobrindo tudo. você é capaz de sentir como eu estou sentindo agora? se não está, você poderia, então, me possuir como um demônio se apossa do corpo de uma pessoa por meio de uma possessão. você poderia sentir em mim, dentro de mim, embaixo da minha pele.

abrindo uma fresta no meio do mundo eu ainda posso enxergar as pessoas indo e vindo sem sangue para marcar seus passos e deixar rastros atrás de si. o amor não acabou, criança. as pessoas só não querem mais sangrar. e eu estou quase morrendo de tanto que sangrei. vez em quando a tristeza me abate por morrer e não ter onde me sepultar. você sempre diz que tenho, sim, tenho meu próprio corpo. eu sei. sabemos. sei que estou agora, dentro do mesmo metrô, indo para o mesmo lugar, no mesmo horário. sei que estamos, todos, engaiolados, vivendo sob uma liberdade forjada. eu nasci com algo em meu peito que me condena e me salva todos os dias. parece um imã que atrai desastres. minha irmã acabou de quebrar um copo de vidro, mas eu ainda estou no metrô e não sei se chegarei a tempo de juntar os cacos. eu nunca chego no horário marcado. alguns desastres são inevitáveis. um homem, que não tinha para onde olhar, olhou para mim. colisão no meio do dia. mas eu não me quebro. nem ele se quebra – imagino que não. o seu olhar faz com que eu sinta nojo. engulo a náusea e olho para o relógio ostentando a mesma hora e os mesmos minutos. os ponteiros se movem e nós continuamos no mesmo lugar, na mesma gaiola, abraçados à nossa própria solidão como um mendigo se cobre com sua manta e a sente como uma extensão do seu próprio corpo.

tudo cheira a mofo. penso em ligar para reclamar. esse vagão sempre está fedendo. desisto sabendo que é inútil. prendo a respiração até que na próxima estação as portas se abram e eu possa respirar. penso em como seria a minha morte. quase choro. morrer talvez seja nossa última queda. e caímos nos braços do desconhecido como em todos os momentos de nossa vida. muitas almas escorreram nesses bancos e ficaram aqui sobre esses bancos, atracadas nesses ferros, espiando o nada pelas janelas de vidro. nessa cidade de pedra ainda existe alguém que seja de carne? ninguém responde. nem eu consigo pensar numa resposta. temo que não reste mais ninguém. temo endurecer ao ponto de não ser mais eu, mas ser como todos esses prédios erguidos no meio da cidade. o passado está tentando respirar atrás das portas trancadas como se trancam os animais selvagens. temo que as lembranças devorem o presente e a nossa possibilidade de amar outra vez. a cidade continua dura, as pessoas continuam duras, os olhos continuam cegos. e eu continuo, aqui, escrevendo. insisto na palavra, no verso, nos poemas sem rimas e sem nexo. a dor e a tristeza emergem dos poros de algumas pessoas. sinto o cheiro. e a minha poesia escorre tentando amolecer as pedras que outrora eram carne e hoje estão endurecidas. é isso: eu sou carne sobre pedras. insisto!

domingo, 2 de outubro de 2016

Aos teus pés


vamos fingir que sei fotografar
é só ficar aqui de perfil sem foco
depois de apagar a luz sobre a tua cabeça
esquecendo todas as coisas que estão
aos teus pés meus olhos descansam
nos caminhos onde você foi
sem fotografar as fotos foram impressas
na tua alma uma rota desenhada
eu tenho medo de ir e conseguir
chegar no fim enfim estamos perdidos
a mão do acaso é uma lança
atravessando a frigidez dos dias
não existe céu nem inferno nem
precisamos purgar nessa distância
eu lanço mais uma âncora
na tua existência pr'eu não naufragar
nos meus joelhos o peso da embarcação
não estou fazendo uma prece
mas peço sem pedir que você me salve
enquanto escutamos mais uma música
anime les feuilles dans leur danse alanguie
você coloca meus demônios
para dançar sem salto
alto o som para não
escutarmos os gritos
nossos pedidos
se perdendo porque
ninguém nos ensinou
a falar