quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

três dias antes faltam


ninguém ainda está vestido de branco porque
faltam três dias e você rezou escondida
para que desse tudo certo, mas ninguém
abriu as pernas depois que as portas se fecharam
atrás de nós o passado rasteja pacientemente
parece que somos tartarugas carregando
um pesado casco sobre as costas
você sorri e posso distinguir teu riso
: é de dor
talvez o passado nos alcance
vinte e oito de dezembro minha cabeça está latejando
esse dia continua desacontecendo enquanto ninguém
se aproxima se estende sobre mim e me toca
sinto gosto de sal mesmo estando de jejum
"ninguém te toca, porque você é feito água-viva:
você queima" uma boca estranha me diz
sinto ódio e quero vomitar não estou de ressaca
quantas ondas do mar você pulou?
repito que faltam três dias e você insiste
em me desejar feliz ano novo quando este ano
ainda não acabou não posso rasgar o calendário
não posso parar de contar os dias
as gotas de remédio pingadas num copo
tentando remediar essa dor que deveria ter doído
há dois meses atrás nós parimos
o amor e esquecemos de cortar o cordão
umbilical agora meu útero está estéril infértil inferno
e
não posso conceber
um novo amor

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Limbo


Não, não feche os meus olhos. Eu ainda não quero dormir nem morrer. Ainda nem é noite e não tenho ninguém para cantar uma cantiga de ninar. Minhas dores só adormecem com a tua voz. A tevê está desligada ou você a deixou no mudo antes de ir embora?  Minhas memórias estão me afogando. Estou só, dentro e fora de um metrô, indo para lugar nenhum. Nem tenho passagem nem sei se sou o passageiro. Talvez eu seja o condutor. Mas eu não sei conduzir essa dança. Você também não sabe.

Uma pedra caiu do alto e ela quase conseguiu segurar com as mãos pequeninas. Não estou dentro nem fora. Onde você está? Eu estou em cima da rocha. Abaixo dos meus pés há água. Muita água. Sinto vertigem. Mas estou apenas sonhando. É uma forma de não sentir dor? Ontem reli algumas palavras soltas. Aquele nem se parece comigo e, ao mesmo tempo, se parece tanto. Decerto estou realmente me afogando e estou sendo só na superfície. Sempre tive tanto pavor de ficar na superfície. Talvez esse que estou sendo agora é apenas aquele do sonho: observando de longe uma menina tentando equilibrar uma pedra gigante com as próprias mãos. A menina tenta ajudar uma outra menina que está à sua frente. Não sei quem é a menina da frente. Talvez fosse eu. Talvez eu sou esse que vê a pedra cair e tenta segurá-la ao mesmo tempo. Não consigo transpor meu corpo até lá. Mas talvez eu já esteja lá. Quando a pedra cai, sinto o seu peso em minhas mãos. É tão pesado e tão angustiante.

A menina já foi uma bailarina. Foi ou ainda é? Ainda é. Uma bailarina nunca deixa de ser bailarina. Sua alma estará sempre dançando pela vida. Viver é inventar coreografias mesmo quando seus pés estão esfolados de tanto andar, de tanto dançar. Parece que nunca acertamos o passo.  Mais uma pedra cai e eu estou e não estou lá. A menina continua tentando segurar a pedra. O peso do mundo sobre as mãos da menina. Talvez viver seja dançar enquanto se tenta equilibrar uma pedra com as mãos.

Será que nós precisamos estar aqui? Precisamos atuar nessa cena? Parece que estamos tentando desesperadamente mostrar o quanto somos fortes. Talvez sejamos fortes, mesmo quando não conseguimos segurar as incontáveis pedras que caem sobre nós. Estou cansado de carregar esse peso. Estou cansado de permanecer aqui, imóvel e intacto. Não estou acordado nem sonhando. As dores também se cansam de doer. É por isso que continuamos dançando mesmo quando nossos pés já estão em carne viva.

Essa insistência em negligenciar o vazio. A imensa cratera que se abriu no meio do peito quando você partiu. Tento inutilmente cobrir o vazio com a mão. É tão fundo. Vertigem. Caio. Não há como parar a queda. Nem como amparar o desastre. Você não sai daí de cima, porque é mais confortável esperar que um deus te estenda os braços e te salve. Você eu nós poderíamos saltar do alto dessa pedra. Poderíamos mergulhar. Você sabe que eu não sei nadar, mas eu quero o risco de me lançar no que eu desconheço. Preciso saber quão profunda a vida é. 

sábado, 23 de dezembro de 2017

Shake it out


é muito pesado para você carregar sozinho
as coisas têm o peso que damos para elas
você não acredita em nada
mais uma vez estou molhando
a ponta dos meus dedos - mas não é
na água benta -
é na vodka que meus dedos se umedecem
me benze mais uma vez me livra desse demônio
eu preciso dançar, mas tudo continua pesado
você me balança de um lado para o outro
como se alguma coisa fosse cair de dentro de mim
mas não cai nem ao menos uma gota se derrama
você ainda me ama? faço o sinal da cruz
não precisa responder
prefiro o silêncio que antecede o fim
a ausência exposta na porta fechada e
shake it out shake it out
livre-se disso, menino
se você ainda não entendeu
então foda-se!
meu copo já está vazio

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Vinte anos depois

Foto: Hélio Beltrânio

eu não sei qual é a sensação de entrar no mar eu gostaria de saber o que eu senti quando eu tinha apenas cinco anos e pela primeira e única vez entrei no mar o mar talvez tenha entrado em mim com tanta força que doeu o mar deve ter doído em mim e entrado e saído com tanta força com tanta fúria com tanta sede de conhecer a imensidão do meu vazio salgando limpando lavando o cheiro o aroma o gosto na boca na pele queimada algumas bolhas d’água o mar entrou em mim o mar me desvirginou o mar invadiu a areia da minha segurança eu criança longe do porto o parto das águas o retorno o regresso esse é o ponto onde uma epifania ascende em minha memória a única lembrança que tenho do mar são as bolhas em minha pele branca uma eclosão uma erupção o mar entrou o mar saiu nem bateu na porta varreu tudo em volta ninguém conseguiu conter as ondas do mar entrando dentro fundo o mar invadindo tudo menino não sabe mais ficar na areia sem destruir castelos o mar continua entrando em mim mas não tenho bolhas para contar histórias furadas todas bolhas mas o mar não saiu de mim


sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Estranhos não podem entrar no paraíso

Foto: Hélio Beltrânio

às vezes eu sou tão precoce que vivo antecipando textos e poemas na minha cabeça sobre momentos que ainda vou viver e antecipo também o momento e a sensação que terei naquele dia. esse texto talvez seja também uma antecipação. meus olhos estão se fechando involuntariamente. é estranho. mas sinto que preciso escrever de olhos fechados. fechei-os por alguns segundos e, quando abri, não havia errado nenhuma palavra. é estranho.  quando estou com os olhos abertos, erro as palavras com frequência. na escuridão eu sempre consegui ver melhor. na escuridão eu sempre consegui ver com mais clareza. não estou falando de morte, mas me parece que tudo finda. assim como esse ciclo. assim como água do lago de Narciso foi findando até secar. Narciso não tem mais onde se ver. Narciso está mergulhado no vazio. Narciso é o próprio vazio. Narciso é a boca sempre aberta esperando uma gota de água. estamos tão sedentos. é a sede que nos empurra para a vida, para o próximo mergulho, para o mistério que há depois de uma porta fechada. eu mergulho até no que já está seco. nem que depois do mergulho eu rache a minha cabeça na rachadura da terra e meu sangue vertendo escorrendo penetre as fissuras. eu me liquefaço para encher o lago, o buraco, o vazio. eu encho o lago para que Narciso possa se ver outra vez. eu como com tanta pressa que até me engasgo. você me come com tanta pressa que acabo ficando atravessado em tua garganta como uma espinha de peixe. é sexta-feira e ninguém mais é santo. você não consegue falar porque estou atravessado em tua garganta e o padre está esperando você confessar os teus pecados e o tempo está passando e o padre está impaciente e tentando abrir as portas do inferno para te enfiar lá dentro, porque no paraíso nem tu nem eu podemos entrar

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Acordamos tarde


essas manhãs de domingo beijam tocam desfazem desmontam desmentem a procura da gente em frente há uma nova dúvida as unhas feitas tingidas tentando cortar rasgar afiar no silêncio áspero na ausência do outro tão morna tão morno um mar brando manso calmo quase morto o toque só precisa atravessar.

domingo, 26 de novembro de 2017

Rolling in the deep

Foto: Hélio Beltrânio

imagino que tenho o teu coração em minhas mãos
eu que era uma marionete dominada por teu querer
agora estou reinando sem coroa ou cetro de ferro
enfio teu coração no espaço entre as minhas pernas
mas não fico excitado meu pau nem se move
sinto que não tenho sexo e você fica duro
de medo
baby,
não vou destruí-lo dessa vez mas enfio
um pouco mais teu coração pulsando debaixo
das minhas roupas sangue manchando a brancura
entre minhas pernas finas
sem lubrificante porque quero que você sinta
a dor de violentar a alma de alguém
enfio com força com sede de rasgo e fome de estrago
meus dentes estão todos estragados
tua carne está podre
: ninguém mais quer te comer
nem eu
mas você continua abrindo as pernas dizendo vem
mete até o fundo
e o mundo entra e o mundo sai entre as tuas pernas
você é tão sujo e minha saliva não pode mais
te limpar nem meu gozo pode te salvar
por que eu insisto nessa história de salvação?
e você enfia a mão no meio das minhas pernas
para salvar
o que restou

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Vazio


como se pudesse antecipar meu próprio parto
abro uma fenda com os dedos tensos de medo
o vazio ocupou todo o espaço do meu corpo
estou com um nó na garganta e
alguns dedos de dilatação
nada transborda
um mar inteiro represado em mim
mas continuo tentando me livrar do útero
e dos braços do passado tentando
me segurar aqui onde as feridas não
se curam nem cicatrizam
o vazio está tão denso que até posso
senti-lo na garganta talvez
eu tenha que vomitá-lo entre minhas pernas
você nasceu para o mundo
mas morreu em mim o amor descansa
não posso deixá-lo morrer agora
sinto que vou rasgar minha garganta
de dentro para fora no fundo da ferida
há uma palavra que eu não consigo ler

sábado, 18 de novembro de 2017

Não tenho um título para te dar

Foto: Henrik Brondsted

eu deveria ter começado a escrever quando uma palavra foi costurada na minha memória. nunca comi tanto doce como no último mês. na verdade, acho que já faz quase dois meses. meu relacionamento – ou minha/nossa gestação – que durou nove meses, acabou. dessa vez eu não me prendi à data. na última ligação, que não me ligou a nada e apenas me desligou dele, ele me disse que foi quase uma gestação e aquele momento estava sendo o parto. estou comendo muito doce. brinco com algumas pessoas que talvez eu fique diabético. por que às vezes eu me empurro para o precipício do sofrimento? eu nunca gostei de atalhos. talvez ele não chegou a descobrir isso em mim. é por isso que eu quase sempre me perco quando estou indo a algum lugar. porque acabo indo pelo caminho mais difícil, o mais demorado, o mais complicado. e, por isso, chego atrasado. as luzes já se apagaram. o filme já começou. nada foi fácil até aqui. eu sabia que ele também não seria. mais de mil quilômetros separavam nossos corpos. uma vez até calculei a distância no google maps, mas não me recordo a distância exata. o número está saltando em minha memória agora, mas eu me recuso a dizer. eu me recuso a escrever. às vezes, sinto que coloquei minhas palavras debaixo da cama como pares de sapatos velhos, sujos e desgastados pelo tempo, que a gente não usa mais. eu, que sempre precisei tanto das palavras para existir, para me explicar, para construir pontes e saltar os vazios, me desfiz de algumas tantas palavras. minhas palavras vez em quando são tão afiadas. acredito que ele tenha sentido isso em alguns momentos. minhas palavras cortam a carne que se deita sobre a minha carne. ainda que as palavras sejam mudas. elas escorrem pelos dedos e sujam as minhas unhas. na última vez que esteve em casa, ele pediu o cortador de unhas. talvez ele não queria me machucar. eu também não queria machuca-lo. estou comendo tanto doce. parece que vou vomitar. mas não vomito. sei que as pessoas estranham quando digo que estou enjoado, mas nunca vomito realmente. eu sei, é incômodo. para mim também é. queria vomitar como vomitei na minha primeira noite de porre. era natal e assim como o menino deus eu também queria nascer. eu estava sujo. minhas feridas doíam. não, não foi ele quem me feriu. não era isso que eu queria dizer. eu queria vomitar como naquela noite. vomitar compulsivamente até não sobrar nenhuma gota de vazio ou saudade. o vazio ainda ocupa tanto espaço em meu corpo. eu conheci o vazio dele. por isso, posso dizer que o amei. e que o amo. lembro-me que comecei a comer tantos doces depois que comecei a escrever o tcc. a morte é tão amarga, meu bem. talvez por isso eu esteja tentando adoçar o paladar. quando escrevo, sinto o peso da palavra na ponta dos dedos e sinto seu gosto na língua. é estranho, parece que minha gengiva ainda está sangrando. eu ate sonho com isso. a tela do celular acendeu. chegou uma notificação. eu nunca espero que seja ele. talvez sejamos realmente muito parecidos em algumas coisas. ele é osso duro de roer. eu também sou. somos então. nosso amor deve ter nascido dessa nossa insistência em roer o osso um do outro. mas pra quê? prossigo comendo muito doce e minha irmã não dorme. às vezes, acho muito bonito o jeito dela e da minha mãe roncar. é, eu sou muito estranho. eu gostava de ouvir ele roncar. parece que o mundo todo dormia quando ele adormecia. até as minhas dores dormiam. escrever sobre morte é morrer duas vezes. já morri tantas vezes entre as linhas do papel ou em sua brancura. ninguém levou flores ou acendeu uma vela pela salvação da minha alma. eu não quero mais me salvar e ir para esse céu que eles dizem que existe. a vida é se perder e se afundar e perder o fôlego e respirar e deixar o calor do sol beijar suas pálpebras. tenho medo de olhar debaixo da cama e encontrar uma palavra morta. onde irei enterrá-la agora que ele não está mais aqui? mas eu preciso dele para enterrar a minha palavra morta? invento que olho debaixo da cama e que a palavra está morta. volto a ser cristão e acredito que a palavra vai ressuscitar em três dias e imagino que três dias depois volto a olhar a palavra e ela ainda está lá. morta. elena está morta. sim, estou assistindo aquele filme que comentei com ele certa vez. mas ele achou melhor não assistir. acho que sempre tive medo que ele se quebrasse. não queria que elena tivesse se quebrado. talvez eu estou sendo egoísta agora, mas queria que elena estivesse viva. queria beber de sua arte. mas a morte me parece uma pedra e ao mesmo tempo um buraco vazio. toda vez que penso em minha morte, imagino um imenso vazio depois. daí não quero morrer, mesmo tendo desejado tantas vezes. agora estou bebendo água. dia desses bebi tanta água que parecia ressaca. talvez eu esteja de ressaca. acabo de me lembrar de uma pessoa que troquei alguns beijos há anos atrás num bar de nome estranho no centro da cidade. ele tinha o mesmo nome que você. os braços eram repletos de tatuagens. o peito também tinha uma tatuagem. mas o coração era vazio. depois dessa lembrança, tudo fica vazio, assim como o coralão dele. ele não me tocou com profundidade. penso que elena queria tocar e ser tocada. elena queria sentir a voz de sua existência ecoar no vazio do mundo. eu também quero. é por isso que estou esbravejando com meus dedos agora enquanto uma palavra agoniza embaixo da cama e eu escuto seu pedido de socorro. mas eu não vou olhar. eu não quero olhar. eu não quero saber qual palavra é. deixo a palavra morrer.

terça-feira, 6 de junho de 2017

Todas as bocas


você diz meu nome sem medo 
de dentro da boca dos dentes da língua
o silencio se dilui na saliva
escutamos um uivo rompendo a mortalidade da noite
som é eco de vida entre as pernas
da mudez
uma serpente rastejando sobre a terra
não pode nos ferir: estamos imunes e salvos
transmutando a pele mudando a cor
teu olho me olha de dentro do olhar
nunca me senti tão nu no meio da noite 
nossos lábios se despiram de todos os medos 
palavra por palavra me aproximo mais
: não sei o quão profundo és mas eu
quero mergulhar
[m
e
r
g
u
lho]
quando falto em mim sou excesso escorrendo
no teu peito despido meu desejo derruba 
todos os escudos e toda a escuridão 
não é mais escura
a poucos passos um lobo quer nos devorar
mas nós acabamos de nascer
os ossos da fera se esmigalham
debaixo dos nossos pés descalços
você vê 
e ainda nem amanheceu
todas as bocas em mim se abrem
: você tem medo
da minha fome?

domingo, 12 de março de 2017

Para L. [ou: Des-cubra a solidaão]



a boca do horizonte se fecha lentamente
enquanto a luz se dilui sobre teus cílios
eu espero que minhas dores adormeçam
e eu possa então escutar tua respiração
calma como o vai-e-vem das ondas
posso molhar meus pés na tua existência
até sentir a sede de me afogar inteiro e nu
no mar límpido da tua vida
o amor é a luz atravessando a janela descortinada
da casa construída em nossa memória
os fantasmas agora dançam em circulo
nada pode nos assustar
talvez eles saibam um ritual que profana
o que ainda está intacto em nós
mas você desce todas as escadas e atravessa
todas as avenidas vencendo os sinais vermelhos
até rasgar a mortalha que recobre o meu peito
a boca do meu deserto se abre
esperando uma gota que escorre
dos teus lábios

abertos todos os olhos
te olham me olham
enxergando com a ponta dos dedos
des-cobrindo a minha nudez
na tua pele
para ser só
sobre
a tua solidão


segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Cansaço

Foto: Hélio Beltrânio

Pensei em te escrever uma carta. Pensei em desejar que se abrisse uma cratera no meio da rua que me engolisse enquanto eu estivesse passando. Estou cansado. Não cansado de você ou da vida ou do presente ou do tempo que goteja do relógio ardendo discretamente minha espera. Pensei em te escrever um e-mail, mas isso talvez soaria tão piegas. Estou cansado de tentar não parecer piegas. Fazer incisão sobre o peito e dar ao outro a permissão que ele veja o que está escondido e retido debaixo da pele se tornou um crime inafiançável. As almas estão escondidas debaixo de duras camadas de indiferença e medo velado. É preciso realizar uma escavação para encontrá-las. Mas nem todos querem se consumir nessa procura. Eu estou apenas te mostrando o que se esconde, aquilo que estava selado e endereçado a alguém que está com o peito tão rasgado quanto o meu. O peso do que eu falo não permanece apenas sobre seus ouvidos, mas perdura sobre meus lábios e queima toda vez que lembro das minhas confissões. Confesso e peço que você não me redima. É o que eu sou e o que não sou, é o que sinto e o que eu gostaria de sentir. Estou tão cansado que mal consigo costurar as palavras uma na outra. Se as palavras pudessem vomitariam de nojo da minha insistência. Mas eu preciso dizer. Uma palavra tem o peso de um mundo pendendo sobre os ombros. Teu colo poderia me amparar agora para que eu não dissesse nada. O silêncio, às vezes, é morte. Queria morrer recostado em teu peito absorvendo cada batida do teu coração. Tua existência poderia enxugar minha solidão até não me restar nenhuma gota. A ponta dos teus dedos poderiam se ocupar de dissecar a minha anatomia. Você poderia me reencontrar dentro de mim. Me fazer nascer para dentro do teu corpo e depois me fazer escorrer de volta para o meu corpo. Me mostre o que ainda não sei de mim.  Estou tão cansado que nem consigo abrir os olhos. Provavelmente você não está encontrando sentido no que estou escrevendo. Nem eu encontro. Escrever, às vezes, parece uma tentativa inútil de sair de um labirinto. Só estou tentando não me movimentar muito para você não acordar. Uma vela que queima lentamente durante a noite enquanto o dia estende seu vestido azul sobre nossas cabeças. É tão azul que mar e céu se confundem. Tuas palavras dedilham minhas cordas vocais. Você compõe sobre minha existência para que eu possa ecoar aquilo que és e sentes. Um violino se lamentando de saudade. As ondas se quebrando como meus ossos desejam se quebrar sobre o teu corpo. Rabisque um ou dois versos na minha pele pálida. Poesia é o espaço abismal que separa minha pele da tua. A saudade talvez nos faça purgar abraçando com ardor as lembranças de quatro dias. Mas os dias estão passando. Os dias estão passando. Por que eu ainda estou tão cansado? Talvez eu esteja cansado de mim. Escrevi até aqui para tentar sair do labirinto. Não consegui.  

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Poema T

Foto: Hélio Beltrânio

quero descobrir o mundo
como a mão trêmula descobre o vazio
entre as pernas virginais não encontro a resposta
nem homem nem mulher
eu sou deus destronado no mundo e entronizado
num corpo marcado borrado e barrado
quando poderei ser além do véu que esconde
minha nudez está aqui
: reinar sobre mim
mas não preciso que estejas aos meus pés
só precisas me deixar respingar minha existência
no mundo meus passos pesam
minha existência ameaça a frágil fortaleza
onde o outro se esconde
não some com o meu nome
não me consome no fio da navalha
não me amassa como uma folha rasurada
a palavra nasceu no meio do vazio
das minhas pernas não pende nenhuma âncora
eu sou livre para navegar
não preciso remar afoita
posso me inebriar no mistério
me afogar num lago seco:
narciso bebeu sua própria imagem
e todos eles – que dizem ser mas gritam debaixo
da lápide –
quebraram todos os espelhos
não querem que eu me veja
querem que minha imagem adormeça dentro
da gaveta
fria e gélida eu não posso mais
ser um cadáver habitando
o mundo não suporta a porta fechada
e o dedo em riste a pedra lançada e o nó desfeito
a saia levantada revelando nada além do enigma
: um poema que começa
mas não finda
la vie est  

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Uma carta para ser lida antes de ser rasgada


O lençol não está tão branco como eu esperava. O que faz você se sentir vivo? Você não sabe como me senti quando três cortes quase fizeram a vida escorrer totalmente do teu corpo. Você não sabe como eu queria que aquela faca tivesse atravessado a nossa distância e feito sangrar toda essa espera. Sou dramático e, às vezes, extremamente meloso. Eu sei. Já está tarde, minha cabeça anuncia aquela dor latejante que só passa com analgésico. Mas não quero me dopar. Quero sentir. Quero sentir se voltei tarde demais. Quero sentir se você ainda é você. Quero sentir se eu ainda sou eu. Quero sentir se eu ainda sou eu para você e se você ainda é você para mim. Você está conseguindo me acompanhar? Sim, sou muito confuso. E, no meio da minha confusão, derrubei todas as paredes que nos aproximavam. Mas para onde nós fomos depois da última mensagem? Nós ao menos conseguimos ir? Ou nós continuamos no mesmo lugar, ambos, adormecidos e entorpecidos por essa procura ávida - e quase insana - por algo (ou alguém?) que faça a vida ter sentido? Queria atravessar tua pele através das tuas cicatrizes. Tenho devoção por tudo aquilo que carrega o peso da vida e por tudo aquilo que foi atravessado pela dor. Não sei se você faz sentido ou se você é o próprio sentido. Não sei se faz sentido para você. Queria escrever uma palavra que ninguém nunca jamais se atreveu a escrever. Queria ferir o papel com uma palavra que nunca foi proferida por boca alguma. Não me atrevo a dizer. O trevo de quatro folhas pode mesmo nos dar sorte? Só não morre. Por favor, não morre. Continue respirando, porque quando você respira eu ainda posso ter esperança dos muros dessa distância irem ruindo um a um até que eu possa te ver além de todas as palavras, de todas as fotos e todas as marcas. Não sei nadar, mas isso nunca me impediu de mergulhar. Mergulhamos para nos salvar ou para desaparecer? Há um outro mundo dentro de mim. O meu caos pode se alinhar ao teu? O teu corpo é a palavra que eu desejaria ter inventado, gerado dentro do meu próprio corpo e parido entre minhas mãos. Ainda não sei o que sou. Você nunca disse que sou poeta e isso me deixa aliviado. Porque talvez, subitamente, você saiba no seu silêncio que eu sou apenas um menino tentando continuar vivo mesmo com a alma tão fodida. Talvez você saiba - e sabe! - que estou apenas tentando me salvar. Você também está. Talvez tua alma seja tão fodida quanto a minha. Talvez eu não saiba mais o que dizer para regressar ao ponto de onde parti. Talvez não haja como regressar. Talvez não haja mais um ponto nem um final. Talvez nós precisamos recomeçar.