segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Cansaço

Foto: Hélio Beltrânio

Pensei em te escrever uma carta. Pensei em desejar que se abrisse uma cratera no meio da rua que me engolisse enquanto eu estivesse passando. Estou cansado. Não cansado de você ou da vida ou do presente ou do tempo que goteja do relógio ardendo discretamente minha espera. Pensei em te escrever um e-mail, mas isso talvez soaria tão piegas. Estou cansado de tentar não parecer piegas. Fazer incisão sobre o peito e dar ao outro a permissão que ele veja o que está escondido e retido debaixo da pele se tornou um crime inafiançável. As almas estão escondidas debaixo de duras camadas de indiferença e medo velado. É preciso realizar uma escavação para encontrá-las. Mas nem todos querem se consumir nessa procura. Eu estou apenas te mostrando o que se esconde, aquilo que estava selado e endereçado a alguém que está com o peito tão rasgado quanto o meu. O peso do que eu falo não permanece apenas sobre seus ouvidos, mas perdura sobre meus lábios e queima toda vez que lembro das minhas confissões. Confesso e peço que você não me redima. É o que eu sou e o que não sou, é o que sinto e o que eu gostaria de sentir. Estou tão cansado que mal consigo costurar as palavras uma na outra. Se as palavras pudessem vomitariam de nojo da minha insistência. Mas eu preciso dizer. Uma palavra tem o peso de um mundo pendendo sobre os ombros. Teu colo poderia me amparar agora para que eu não dissesse nada. O silêncio, às vezes, é morte. Queria morrer recostado em teu peito absorvendo cada batida do teu coração. Tua existência poderia enxugar minha solidão até não me restar nenhuma gota. A ponta dos teus dedos poderiam se ocupar de dissecar a minha anatomia. Você poderia me reencontrar dentro de mim. Me fazer nascer para dentro do teu corpo e depois me fazer escorrer de volta para o meu corpo. Me mostre o que ainda não sei de mim.  Estou tão cansado que nem consigo abrir os olhos. Provavelmente você não está encontrando sentido no que estou escrevendo. Nem eu encontro. Escrever, às vezes, parece uma tentativa inútil de sair de um labirinto. Só estou tentando não me movimentar muito para você não acordar. Uma vela que queima lentamente durante a noite enquanto o dia estende seu vestido azul sobre nossas cabeças. É tão azul que mar e céu se confundem. Tuas palavras dedilham minhas cordas vocais. Você compõe sobre minha existência para que eu possa ecoar aquilo que és e sentes. Um violino se lamentando de saudade. As ondas se quebrando como meus ossos desejam se quebrar sobre o teu corpo. Rabisque um ou dois versos na minha pele pálida. Poesia é o espaço abismal que separa minha pele da tua. A saudade talvez nos faça purgar abraçando com ardor as lembranças de quatro dias. Mas os dias estão passando. Os dias estão passando. Por que eu ainda estou tão cansado? Talvez eu esteja cansado de mim. Escrevi até aqui para tentar sair do labirinto. Não consegui.  

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Poema T

Foto: Hélio Beltrânio

quero descobrir o mundo
como a mão trêmula descobre o vazio
entre as pernas virginais não encontro a resposta
nem homem nem mulher
eu sou deus destronado no mundo e entronizado
num corpo marcado borrado e barrado
quando poderei ser além do véu que esconde
minha nudez está aqui
: reinar sobre mim
mas não preciso que estejas aos meus pés
só precisas me deixar respingar minha existência
no mundo meus passos pesam
minha existência ameaça a frágil fortaleza
onde o outro se esconde
não some com o meu nome
não me consome no fio da navalha
não me amassa como uma folha rasurada
a palavra nasceu no meio do vazio
das minhas pernas não pende nenhuma âncora
eu sou livre para navegar
não preciso remar afoita
posso me inebriar no mistério
me afogar num lago seco:
narciso bebeu sua própria imagem
e todos eles – que dizem ser mas gritam debaixo
da lápide –
quebraram todos os espelhos
não querem que eu me veja
querem que minha imagem adormeça dentro
da gaveta
fria e gélida eu não posso mais
ser um cadáver habitando
o mundo não suporta a porta fechada
e o dedo em riste a pedra lançada e o nó desfeito
a saia levantada revelando nada além do enigma
: um poema que começa
mas não finda
la vie est