segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Por que você não sai do útero da sua mãe?

Foto: Hélio Beltrânio

eu queria escrever sobre você, sim, eu queria me afogar no mar. ah, eu queria que as águas me engolissem e penetrassem cada poro do meu corpo. iemanjá não quer mais tuas flores – nem tuas oferendas. não vou me sepultar agora. porque a vida, ah, a vida está se estendendo à minha frente. o mar não é vermelho, mas ele se abriu. deixando um caminho para você voltar. essa noite caiu de quatro no meio do meu dia eu não sei quantas horas são. mas a mãe esqueceu de abrir as pernas quando o útero estava contraindo. por que você não sai do útero da sua mãe? angústia é uma pergunta emudecida. agora eu tento sair. as paredes. as quatro paredes e o chão e o teto. tudo é tão apertado mesmo eu sendo tão pequeno. eu não estou no mar, mas eu sinto a água na ponta dos pés. não preciso dançar para chover. essa saudade é chuva ácida. não fizemos a cama. achávamos que iríamos voltar. não voltamos. a cama continua desfeita. assim como o(s) nós que um dia fizemos. o que você fez nos últimos dias? sobre qual pele você derramou a sua solidão? eu não derramei a minha. não consegui escapar. não há escapatória. só queria escrever sobre você, mas quebrei meu espelho durante a madrugada. insisto em andar no escuro. ermo. tão cedo. o mar me engole. pequenos goles. depois de (me) regurgitar estou de volta. a areia não é movediça, mas não me sinto seguro. ainda. me recordo de um sonho. eu indo, eu entrando, eu vendo o mar. dizia, angustiado, que iemanjá não poderia fazer isso com você. mas não sei o que ela não poderia te fazer. depois eu estava no mar. eu me via entrando no mar. eu me via e te via e eu via nós dois vestidos de branco e eu ainda via o mar e eu podia sentir o mar mesmo vendo a cena. aquele corpo realmente era meu? aquele corpo que queria o teu corpo era meu? teu corpo era teu corpo e teu corpo queria o meu? aquela angústia que antecede um abraço era minha? ou estávamos tão próximos que eu podia sentir a tua angústia? a proximidade poderia me confundir os sentidos e me fazer acreditar que aquele corpo teso, diante do teu corpo, era meu? eu não sei o que é meu nem o que é teu. mas logo estávamos abraçados. uma brancura uma luz uma vertigem. ainda podia ver o mar por cima dos teus ombros e eu te dizia para deixar o passado passar e eu te pedia para deixar o mar levar o passado e o passado insistia em ficar aqui, entre nós – e laços – enquanto estávamos abraçados. tudo girava e eu já não observava mais a cena. eu estava nela. como numa possessão eu já estava dentro do meu corpo. aquele corpo era meu e o teu corpo era teu. mesmo tendo um tecido separando nossos corpos eu podia sentir. o passado permanecia ali. você permanecia ali. como dois mundos que acabaram de se encontrar. não colidimos. nem oscilamos. tudo girando. girando depressa demais. meus olhos cerrados, mas eu podia sentir a luz que emanava dos nossos corpos. nunca fomos um. estávamos perdidos no meio da luz. quando tudo se apagou eu abri os olhos. as paredes voltaram a ser paredes e uma mão tocava gentilmente meu rosto tentando me reconhecer e me lembrar que eu ainda era eu e a mão tentava me consolar, porque você ainda era você. mas havia ficado no mar. ou no útero da sua mãe.

domingo, 28 de janeiro de 2018

Causa mortis



agora eu sei porque esqueci
o teu olhar verde
desnudado desvirginado depurado
tão caro o preço que pagamos por colher o fruto
antes de estar maduro
eu não sei quanto tempo dura essa mordida
mas a boca está sempre esperando mais
um pedaço da minha carne toca a tua língua
o tempo não chegou, mas nós acordamos
antes do despertador despertar o que havia
adormecido em nós há não sei quantos anos
a memória engoliu teus dois olhos e
eu enterrei a minha esperança
antes
da tua boca se abrir eu exumei o meu corpo
para tuas mãos se ocuparem da autópsia
examinando cada centímetro da minha anatomia
dedos rasgando as entranhas cheiro queimando
as narinas não suportam o fedor
mas você continua tentando descobrir
a cama
para encontrar a causa
da minha morte

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Tudo desacontece


as garrafas de vinho que não abrimos
as ressacas que não tivemos e
as dores que não doeram
os silêncios que não fizemos por não suportar o peso do que se tem a dizer
as portas que não destrancamos para chegar e para partir
os lençóis que não amassamos com o entrelaçar dos nossos corpos
o chão que não sujamos com o nosso descuido
os cigarros que não acendemos
o gosto que não sentimos
as bocas que não se abriram tentando vomitar todo lodo, todo nojo
a imobilidade das línguas que não tentam mais inventar coreografias no céu da boca
os infernos que não visitamos mais
a luz que não se acende
as lágrimas que não escorrem mais lavando nossa face na hora da despedida
a alegria do reencontro não mais avistada - ou sentida
a pressa para chegar
o elevador que demora
a insistência na campainha
o latido do cachorro
a tevê no mudo
o ouvido atento
a carta sem remetente
o olho que lê e sente
a resposta muda
eu mudo
mas não levanto nenhuma parede