Foto: Hélio Beltrânio |
eu
queria escrever sobre você, sim, eu queria me afogar no mar. ah, eu queria que
as águas me engolissem e penetrassem cada poro do meu corpo. iemanjá não quer
mais tuas flores – nem tuas oferendas. não vou me sepultar agora. porque a
vida, ah, a vida está se estendendo à minha frente. o mar não é vermelho, mas
ele se abriu. deixando um caminho para você voltar. essa noite caiu de quatro
no meio do meu dia eu não sei quantas horas são. mas a mãe esqueceu de abrir as
pernas quando o útero estava contraindo. por que você não sai do útero da sua
mãe? angústia é uma pergunta emudecida. agora eu tento sair. as paredes. as
quatro paredes e o chão e o teto. tudo é tão apertado mesmo eu sendo tão
pequeno. eu não estou no mar, mas eu sinto a água na ponta dos pés. não preciso
dançar para chover. essa saudade é chuva ácida. não fizemos a cama. achávamos
que iríamos voltar. não voltamos. a cama continua desfeita. assim como o(s) nós
que um dia fizemos. o que você fez nos últimos dias? sobre qual pele você derramou
a sua solidão? eu não derramei a minha. não consegui escapar. não há
escapatória. só queria escrever sobre você, mas quebrei meu espelho durante a
madrugada. insisto em andar no escuro. ermo. tão cedo. o mar me engole.
pequenos goles. depois de (me) regurgitar estou de volta. a areia não é
movediça, mas não me sinto seguro. ainda. me recordo de um sonho. eu indo, eu
entrando, eu vendo o mar. dizia, angustiado, que iemanjá não poderia fazer isso
com você. mas não sei o que ela não poderia te fazer. depois eu estava no mar.
eu me via entrando no mar. eu me via e te via e eu via nós dois vestidos de
branco e eu ainda via o mar e eu podia sentir o mar mesmo vendo a cena. aquele
corpo realmente era meu? aquele corpo que queria o teu corpo era meu? teu corpo
era teu corpo e teu corpo queria o meu? aquela angústia que antecede um abraço
era minha? ou estávamos tão próximos que eu podia sentir a tua angústia? a
proximidade poderia me confundir os sentidos e me fazer acreditar que aquele
corpo teso, diante do teu corpo, era meu? eu não sei o que é meu nem o que é
teu. mas logo estávamos abraçados. uma brancura uma luz uma vertigem. ainda
podia ver o mar por cima dos teus ombros e eu te dizia para deixar o passado
passar e eu te pedia para deixar o mar levar o passado e o passado insistia em
ficar aqui, entre nós – e laços – enquanto estávamos abraçados. tudo girava e
eu já não observava mais a cena. eu estava nela. como numa possessão eu já
estava dentro do meu corpo. aquele corpo era meu e o teu corpo era teu. mesmo
tendo um tecido separando nossos corpos eu podia sentir. o passado permanecia
ali. você permanecia ali. como dois mundos que acabaram de se encontrar. não
colidimos. nem oscilamos. tudo girando. girando depressa demais. meus olhos
cerrados, mas eu podia sentir a luz que emanava dos nossos corpos. nunca fomos
um. estávamos perdidos no meio da luz. quando tudo se apagou eu abri os olhos. as
paredes voltaram a ser paredes e uma mão tocava gentilmente meu rosto tentando
me reconhecer e me lembrar que eu ainda era eu e a mão tentava me consolar,
porque você ainda era você. mas havia ficado no mar. ou no útero da sua mãe.