Foto: Hélio Beltrânio |
você
está sentindo? você consegue sentir isso? você pode sentir a leveza dessas
coisas que pairam agora ao meu redor? chamo de coisas, porque não consigo
nomeá-las. a poeira do tempo recobrindo tudo. você é capaz de sentir como eu
estou sentindo agora? se não está, você poderia, então, me possuir como um
demônio se apossa do corpo de uma pessoa por meio de uma possessão. você
poderia sentir em mim, dentro de mim, embaixo da minha pele.
abrindo
uma fresta no meio do mundo eu ainda posso enxergar as pessoas indo e vindo sem
sangue para marcar seus passos e deixar rastros atrás de si. o amor não acabou,
criança. as pessoas só não querem mais sangrar. e eu estou quase morrendo de
tanto que sangrei. vez em quando a tristeza me abate por morrer e não ter onde
me sepultar. você sempre diz que tenho, sim, tenho meu próprio corpo. eu sei.
sabemos. sei que estou agora, dentro do mesmo metrô, indo para o mesmo lugar,
no mesmo horário. sei que estamos, todos, engaiolados, vivendo sob uma
liberdade forjada. eu nasci com algo em meu peito que me condena e me salva todos
os dias. parece um imã que atrai desastres. minha irmã acabou de quebrar um
copo de vidro, mas eu ainda estou no metrô e não sei se chegarei a tempo de
juntar os cacos. eu nunca chego no horário marcado. alguns desastres são
inevitáveis. um homem, que não tinha para onde olhar, olhou para mim. colisão
no meio do dia. mas eu não me quebro. nem ele se quebra – imagino que não. o
seu olhar faz com que eu sinta nojo. engulo a náusea e olho para o relógio ostentando
a mesma hora e os mesmos minutos. os ponteiros se movem e nós continuamos no
mesmo lugar, na mesma gaiola, abraçados à nossa própria solidão como um mendigo
se cobre com sua manta e a sente como uma extensão do seu próprio corpo.
tudo
cheira a mofo. penso em ligar para reclamar. esse vagão sempre está fedendo.
desisto sabendo que é inútil. prendo a respiração até que na próxima estação as
portas se abram e eu possa respirar. penso em como seria a minha morte. quase
choro. morrer talvez seja nossa última queda. e caímos nos braços do desconhecido
como em todos os momentos de nossa vida. muitas almas escorreram nesses bancos
e ficaram aqui sobre esses bancos, atracadas nesses ferros, espiando o nada
pelas janelas de vidro. nessa cidade de pedra ainda existe alguém que seja de
carne? ninguém responde. nem eu consigo pensar numa resposta. temo que não
reste mais ninguém. temo endurecer ao ponto de não ser mais eu, mas ser como
todos esses prédios erguidos no meio da cidade. o passado está tentando
respirar atrás das portas trancadas como se trancam os animais selvagens. temo
que as lembranças devorem o presente e a nossa possibilidade de amar outra vez.
a cidade continua dura, as pessoas continuam duras, os olhos continuam cegos. e
eu continuo, aqui, escrevendo. insisto na palavra, no verso, nos poemas sem
rimas e sem nexo. a dor e a tristeza emergem dos poros de algumas pessoas.
sinto o cheiro. e a minha poesia escorre tentando amolecer as pedras que
outrora eram carne e hoje estão endurecidas. é isso: eu sou carne sobre pedras.
insisto!
Vc me leu!
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