Foto: Henrik Brondsted |
eu deveria ter começado a escrever
quando uma palavra foi costurada na minha memória. nunca comi tanto doce como
no último mês. na verdade, acho que já faz quase dois meses. meu relacionamento
– ou minha/nossa gestação – que durou nove meses, acabou. dessa vez eu não me
prendi à data. na última ligação, que não me ligou a nada e apenas me desligou
dele, ele me disse que foi quase uma gestação e aquele momento estava sendo o
parto. estou comendo muito doce. brinco com algumas pessoas que talvez eu fique
diabético. por que às vezes eu me empurro para o precipício do sofrimento? eu
nunca gostei de atalhos. talvez ele não chegou a descobrir isso em mim. é por
isso que eu quase sempre me perco quando estou indo a algum lugar. porque acabo
indo pelo caminho mais difícil, o mais demorado, o mais complicado. e, por
isso, chego atrasado. as luzes já se apagaram. o filme já começou. nada foi
fácil até aqui. eu sabia que ele também não seria. mais de mil quilômetros separavam
nossos corpos. uma vez até calculei a distância no google maps, mas não me
recordo a distância exata. o número está saltando em minha memória agora, mas
eu me recuso a dizer. eu me recuso a escrever. às vezes, sinto que coloquei
minhas palavras debaixo da cama como pares de sapatos velhos, sujos e
desgastados pelo tempo, que a gente não usa mais. eu, que sempre precisei tanto
das palavras para existir, para me explicar, para construir pontes e saltar os
vazios, me desfiz de algumas tantas palavras. minhas palavras vez em quando são
tão afiadas. acredito que ele tenha sentido isso em alguns momentos. minhas
palavras cortam a carne que se deita sobre a minha carne. ainda que as palavras
sejam mudas. elas escorrem pelos dedos e sujam as minhas unhas. na última vez
que esteve em casa, ele pediu o cortador de unhas. talvez ele não queria me
machucar. eu também não queria machuca-lo. estou comendo tanto doce. parece que
vou vomitar. mas não vomito. sei que as pessoas estranham quando digo que estou
enjoado, mas nunca vomito realmente. eu sei, é incômodo. para mim também é. queria
vomitar como vomitei na minha primeira noite de porre. era natal e assim como o
menino deus eu também queria nascer. eu estava sujo. minhas feridas doíam. não,
não foi ele quem me feriu. não era isso que eu queria dizer. eu queria vomitar
como naquela noite. vomitar compulsivamente até não sobrar nenhuma gota de
vazio ou saudade. o vazio ainda ocupa tanto espaço em meu corpo. eu conheci o
vazio dele. por isso, posso dizer que o amei. e que o amo. lembro-me que
comecei a comer tantos doces depois que comecei a escrever o tcc. a morte é tão
amarga, meu bem. talvez por isso eu esteja tentando adoçar o paladar. quando
escrevo, sinto o peso da palavra na ponta dos dedos e sinto seu gosto na
língua. é estranho, parece que minha gengiva ainda está sangrando. eu ate sonho
com isso. a tela do celular acendeu. chegou uma notificação. eu nunca espero
que seja ele. talvez sejamos realmente muito parecidos em algumas coisas. ele é
osso duro de roer. eu também sou. somos então. nosso amor deve ter nascido
dessa nossa insistência em roer o osso um do outro. mas pra quê? prossigo
comendo muito doce e minha irmã não dorme. às vezes, acho muito bonito o jeito
dela e da minha mãe roncar. é, eu sou muito estranho. eu gostava de ouvir ele
roncar. parece que o mundo todo dormia quando ele adormecia. até as minhas
dores dormiam. escrever sobre morte é morrer duas vezes. já morri tantas vezes
entre as linhas do papel ou em sua brancura. ninguém levou flores ou acendeu
uma vela pela salvação da minha alma. eu não quero mais me salvar e ir para
esse céu que eles dizem que existe. a vida é se perder e se afundar e perder o
fôlego e respirar e deixar o calor do sol beijar suas pálpebras. tenho medo de olhar
debaixo da cama e encontrar uma palavra morta. onde irei enterrá-la agora que
ele não está mais aqui? mas eu preciso dele para enterrar a minha palavra
morta? invento que olho debaixo da cama e que a palavra está morta. volto a ser
cristão e acredito que a palavra vai ressuscitar em três dias e imagino que
três dias depois volto a olhar a palavra e ela ainda está lá. morta. elena está
morta. sim, estou assistindo aquele filme que comentei com ele certa vez. mas
ele achou melhor não assistir. acho que sempre tive medo que ele se quebrasse. não
queria que elena tivesse se quebrado. talvez eu estou sendo egoísta agora, mas
queria que elena estivesse viva. queria beber de sua arte. mas a morte me
parece uma pedra e ao mesmo tempo um buraco vazio. toda vez que penso em minha
morte, imagino um imenso vazio depois. daí não quero morrer, mesmo tendo
desejado tantas vezes. agora estou bebendo água. dia desses bebi tanta água que
parecia ressaca. talvez eu esteja de ressaca. acabo de me lembrar de uma pessoa
que troquei alguns beijos há anos atrás num bar de nome estranho no centro da cidade.
ele tinha o mesmo nome que você. os braços eram repletos de tatuagens. o peito
também tinha uma tatuagem. mas o coração era vazio. depois dessa lembrança, tudo
fica vazio, assim como o coralão dele. ele não me tocou com profundidade. penso
que elena queria tocar e ser tocada. elena queria sentir a voz de sua
existência ecoar no vazio do mundo. eu também quero. é por isso que estou
esbravejando com meus dedos agora enquanto uma palavra agoniza embaixo da cama
e eu escuto seu pedido de socorro. mas eu não vou olhar. eu não quero olhar. eu
não quero saber qual palavra é. deixo a palavra morrer.
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