sábado, 6 de agosto de 2016

Indecifrável

Foto: Hélio Beltrânio

você abre o livro com cuidadoso zelo e dedos trêmulos como se estivesse abrindo espaço entre minhas pernas. ou seria o contrário? não importa. a porta está aberta velando um convite mudo. brancas e esguias: revelando o universo e versos enroscados entre os poucos pelos. ansiosas e sedentas como um mar intocado que nunca experimentou o mergulho de um corpo. quando vais mergulhar em mim? teus olhos estão repletos de mãos e dedos incontáveis arranham a minha solidão. é inútil e indolor. quanto mais arranhas, mais me sinto inalcançável. estou enterrado a sete palmos dentro do meu próprio corpo. não suportas a tua impotência diante da minha existência envolta em uma casca grossa e áspera. não suporto permanecer incólume. e prossegues insistentemente nesse teu ofício de arranhar-me e tentar rasgar-me a pele, romper o hímen que protege a minha solidão, alcançar a carne, afogar-se entre os ossos e morrer afogado em minha alma. tudo é cinza. orifícios são labirintos e estás perdido entre o corpo e a alma. a ânsia de preenche-los é apenas a fome secreta de mergulhar em mim até encontrar o lugar onde a minha alma se esconde. estamos brincando como duas crianças brincam de esconde-esconde. quanto mais nu estou diante dos teus olhos, mais estou escondido. talvez você precise me dissecar para encontrar o que tanto procuras. dedos não me alcançam e o teu falo se perde dentro da minha anatomia indecifrável e você se cansa e você insiste em me arranhar com tuas garras até as minhas pernas se abrirem ainda mais como um livro se abre para quem o lê para revelar as letras, as palavras, as frases, os mistérios. há um mistério insondável escondido entre as folhas de um livro – e entre as minhas pernas alvas. eu me abro todo diante da tua fome. eu me viro uma duas três quatro e duzentas e trinta e seis vezes como as páginas são viradas entre os dedos de quem o lê. eu quero que você me leia. e você – desesperado – não sabe mais ler e descubro que você sabe ler, mas não consegue ler o que está entre as minhas pernas e rasgas minhas virilhas e manchas de sangue as tuas mãos e sente o calor escorrer entre os teus dedos e tens medo que a vida abandone o meu corpo e você não tenha mais onde insistir onde mergulhar onde morrer e onde renascer. e, então, no ápice de uma epifania, um estalo, como no momento em que arrancaram o teu primeiro dente de leite, tu percebes que não procuras a minha alma em meu corpo, mas procuras no meu corpo a salvação do inferno em que o teu se transformou. queres violar a minha carne e fazer-me um corte para abrigar-se em mim como se o meu corpo pudesse ser um útero capaz de te salvar do mundo, capaz de salvar-te de você mesmo. abro-me ainda mais como a vagina de uma parturiente prestes a dar a luz a seu primogênito. esse parto não expulsa nada do meu corpo. estou parindo você para dentro de mim. você me cabe inteiro. com ossos e vísceras. recebo-te e te tomo e me fecundas e estou perdido e estamos perdidos porque não há palavra capaz de dar nome ao que sinto. gozamos porque nos cansamos de mergulhar e só encontrar o vazio. a impotência me emudece e suturo o rasgo feito para que ninguém te salve de mim.

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