terça-feira, 6 de setembro de 2016

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Foto: Hélio Beltrânio

Você me amarra sobre a cama e o peso do chão está sobre o meu corpo e eu não consigo encontrar uma lógica nisso que você acabou de dizer. Só não faço você engolir tudo de volta porque ainda estou amarrado ao pé da cama e aos teus pés esfolados de tanto permanecer aqui velando nosso amor em coma enquanto você goza, gritando, sem conseguir dizer o meu nome. Você goza sobre o corpo de outro sobre a cama de outro e amarra outras mãos que não as minhas e prende a minha liberdade sobre seus calcanhares pra que você também não consiga fugir. Quem aprisiona também se torna prisioneiro.

Não há como suportar olhar no espelho e conseguir se enxergar. Resta o desastre e a fúria e a fuga e o estilhaço. A colisão da tua pupila contra a minha. O pavor. A bomba que nunca explode e o gatilho e o tiro que saiu pela culatra. Quase enlouquecendo com o tic-tac-tic-tac desse relógio pendurado na parede. O meu vazio flertou com o teu vazio e nos derramamos e nos afogamos e bebemos tudo que podíamos beber e vomitamos, juntos, abraçados e com as pernas enroscadas no banheiro. Teu pau murcho e minha boca morna. Decadência. Minha existência presa numa coleira arrastada pelas ruas. O teu fetiche é me ver cair até meus ossos não conseguirem mais suportar o peso do meu corpo.

Eu queria saber escrever com a delicadeza violenta dos pés de uma bailarina sobre meus dedos. Mas você pede bate-mais-uma-pra-mim e antes-de-engolir-me-mostra e você gosta quando engulo a acidez do teu egoísmo e você gosta de ver a minha miséria, assim, exposta, e depois cospe em cima. Você não violentou apenas meu corpo. Você não consegue ver os hematomas. Você violentou a minha existência. Eu conheci o inferno que queima sem fogo. Nenhuma oração foi capaz de me salvar. Eu me benzi sessenta e nove vezes. Foi inútil. Eu não sei se estava dentro ou fora nem a porta eu conseguia encontrar e agora estou perdido nesse limbo entre o passado e o presente, mas talvez eu esteja escrevendo um oráculo e prevendo tudo que vai me acontecer. Não! Outra vez não. Não vais me foder sem antes alcançar o orifício da minha alma, sem antes morrer em mim e comigo sepultar como se sepultam as sementes.

Queria abrir um buraco no papel pra me enfiar inteiro – e não só esconder a cabeça – pra me proteger dessa vergonha e desse desastre que somos nós. Desisto. Escrever, às vezes, é como estuprar a si mesmo tentando romper o hímen que protege as feridas, as dores mais doídas e as cenas mais escurecidas para não cegar a visão de quem já viu mais do que deveria ter visto em vinte e quatro anos e faz um ano que não nos vemos, mas você vem me visitar e deposita sobre meu corpo o peso do vazio de algo que não foi, de algo que, talvez, jamais seja. Eu sou a fera escondida atrás das grades dessas palavras. Escrevo para que você saiba um pouco de mim sem que isso te machuque. Talvez a liberdade não exista.

2 comentários:

  1. Você concatena as coisas com e's ao invés de vírgulas. É apressado e caótico, como se realmente fosse um reflexo preciso da história que as palavras contam.

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    1. Escrever, às vezes, é como vomitar compulsivamente. Daí não consigo resistir aos e's e engolir as vírgulas, rs.
      Agradeço sua leitura! ;)

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