terça-feira, 15 de novembro de 2016

Coito interrompido

Foto: Hélio Beltrânio

Um sim pode amolecer uma pedra no meio do caminho. A boca do mundo se abrindo lentamente para mim. Não tem dentes para mastigar. Não escutamos sinos, mas alguém diz amém, alguém diz que o fim se aproxima e não há como se proteger, porque a realidade explode na nossa cara e nossos braços estão postos para trás como numa paralisia do sono. Mas nós estamos acordados, não estamos? Acontece assim, como aconteceu aos cinco ou seis anos, ao atravessar a rua, mamãe me ensinou a olhar para os dois lados antes de ir, olhei para um lado, mas, quando olhei para o outro, o mundo se perdeu debaixo do breu e a morte quase me beijou e me acordou da vida. Um sim nos desperta da morte e faz cada músculo do nosso corpo doer. Suas unhas pontudas rasgam a minha pele e a mortalha que me cobre. Estou tentando atravessar a rua e você está do outro lado. Lembro que devo olhar para os dois lados.  Não lembro mais quem me ensinou. Olho para um lado. Um passo. Estilhaços sobre o rosto. Ninguém pode mais se proteger do estrago. Tenho medo que você não me reconheça depois de ver meu rosto todo ferido. A minha face em tua memória pode ser uma ferida mal-curada. Mas nós mergulhamos de tão pequenos que somos na brecha na rachadura no meio do concreto. Inferno é nunca desatar os nós que prendem a solidão ao seu próprio corpo. Por que você ainda está rezando? Deus tem medo de você. É o nosso ritual e o vento levanta as toalhas postas sobre a mesa e não há oferendas e há só uma solidão sob(re) outra solidão procurando a porta de saída e a porta de entrada se abre como a boca se abriu no início. O ponto final não finda. O ponto final é um abismo que se abre após a última palavra escrita. O ponto final foi de onde d(eu)s começou. É escuro e mudo na extensão de suas bordas. Flertamos. Deslizamos a palma das mãos sobre a superfície. As minhas mãos estão sempre tensas e rígidas. Talvez até aqui eu tenha apenas tocado corpos trancados. Metemos alguns dedos para dentro do ponto final. Arde? Antes que sangre tiramos os dedos. Um coito interrompido. No meio da rua havia um ponto final. Eu atravessei.

4 comentários: