quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A morte é um elefante sobre nossos ombros

Foto: Hélio Beltrânio

Não leia minha mão nem veja a minha sorte. Quebrei sete espelhos quando fiz sete anos. Não me machuquei – por fora.  Faça as contas para saber quantos anos ainda me restam de azar. Eu não sou supersticioso, mas, de tanto você me falar de sorte e azar, passei acreditar que estou afundando lentamente nisso que você chama de azar e eu, ironicamente, chamo de sina. Sina e destino estão entrelaçados? Acordei pensando que não pode ser dessa forma, não pode começar e acabar, assim, como todas as coisas acabam, findam, se partem como os setes espelhos se partiram.

Não é possível que eu tenha aprendido a me equilibrar numa bicicleta apenas aos dezoito anos enquanto um elefante já montava sobre meus ombros e me curvava as costas e se equilibrava com maestria sobre mim. A morte é um elefante sobre nossos ombros, eu pensei ontem depois da enxurrada de notícias. Como podem as pessoas continuarem lendo as notícias, vendo as fotos, escutando as reportagens? Como podem os humanos não sentirem o peso do elefante sobre seus ombros? Como pode a vida passar distraidamente pela morte que está sempre com sua boca aberta, com dentes de sobra para nos comer inteiros e com suas garras tão bem afiadas. A morte não é tão poética como parecia?

Dia desses sonhei que uma mulher me matava. Sim, ela me cravava algo no peito e depois tudo se perdeu embaixo da escuridão. Acordei pedindo socorro. Mas ninguém ouviu, acho. Será que estamos a todo o momento pedindo que alguém nos socorra da morte? Será que essa indiferença diante da morte não é apenas uma forma de negar a nós mesmos o quão frágil somos? É a fragilidade de um fio que nos permite estar ancorados aqui. Queria me lembrar de outro sonho. Queria lembrar das pequenas e minuciosas mortes que venho experimentado até aqui.

Você não sente o fedor dos cadáveres esquecidos dentro do seu próprio corpo? A morte, às vezes, carece de um ritual. A despedida, o silêncio, o fechar das pálpebras, o calor de uma carne pulsando cedendo espaço para a frieza da finitude. Por que as vidas são tão breves? Uma pessoa chega e logo parte. Mas continua fisicamente viva. Continua pulsando vida fora do nosso corpo. Você não sente o fedor dos cadáveres em decomposição dentro do seu corpo? Quantas vezes eu já morri e esqueci de me sepultar para poder renascer. Sepultura é onde tudo termina: sejam as vidas, sejam as histórias, sejam os amores. Minha mãe me olha como se quisesse me engolir de volta para dentro de si. Não tenho medo. Mas talvez esteja apenas confundindo meu desejo com o dela. Talvez eu queira que o desejo dela seja o meu. E não é. Porque mamãe, às vezes, está tão próxima e ao mesmo tempo tão distante. Quero gritar pedindo socorro. Tenho medo de deixa-la surda.

Gritamos dia após dia e nem ao menos nós mesmos nos escutamos. Ontem escorri tudo pelo ralo e o senti vomitando de volta pra mim. Sinto que escrever é como vomitar compulsivamente às 4h da manhã após ter bebido descontroladamente. Não posso reter em mim. Cada palavra é um fiasco de vida – e de morte – que cai sobre o papel. É desvirginar. É desposar. É foder consigo mesmo quando a mão está seca e o pau não está rijo e a boceta não está lubrificada, mas você insiste ainda que esteja se machucando e sangrando. A dor entorpece a si mesma. É uma maldição sentir?

2 comentários:

  1. Texto de sensibilidade ímpar que toca em questões universais e humanas. Escorra sempre!

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    1. É muito importante pra mim ler um comentário seu. Fico feliz que tenha te toco. Obrigado pela leitura! <3

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